Riquelme na presidência do Boca Juniors cria barreiras ao modelo SAF/SAD no futebol argentino

Ex-jogador Juan Román Riquelme tornou-se o presidente mais votado da história do Boca Juniors - Reprodução / Instagram (@todosobreroman10)

Nos tempos em que desfilava sua classe pelos gramados, trajando a camisa 10 do Boca Juniors, o meia-atacante Juan Román Riquelme representava uma dor de cabeça para os defensores encarregados da missão quase impossível de marcá-lo.

Ganhador de 15 títulos oficiais pelo time xeneize, sendo três Copas Libertadores, “El Rato”, modo como o ídolo é conhecido, acaba de somar mais um feito ao seu currículo vitorioso: no último fim de semana, sagrou-se como o presidente mais votado da história do Boca Juniors e do futebol argentino, derrotando nada menos que o grupo de Mauricio Macri, que já presidiu tanto o clube quanto a própria Argentina.

Atual vice-presidente do clube, Riquelme obteve quase 64% da preferência dos 43 mil sócios que compareceram para votar. Ele presidirá o Boca Juniors pelos próximos quatro anos.

Sua vitória representará uma séria dor de cabeça para os grupos que defendem a implantação, na Argentina, do modelo de Sociedades Anônimas Desportivas (SADs), que funcionariam em um sistema similar ao das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs), atualmente em vigor no Brasil.

Isso porque a campanha do craque foi baseada em uma plataforma totalmente oposta ao sistema de SADs. O modelo é defendido pelo presidente eleito da Argentina, Javier Milei. Declarações do então candidato, proferidas em 2022 (mas que repercutiram na reta final da campanha eleitoral deste ano), levaram os principais clubes do país a se posicionarem publicamente contra a ideia de transformar as associações esportivas em Sociedades Anônimas.

O Boca Juniors foi um dos que rejeitaram as SADs de maneira mais contundente. Milei acabou sendo eleito, contando inclusive com o apoio de Macri, no segundo turno.

No último domingo (17), Milei resolveu retribuir a gentileza e compareceu ao Estádio de La Bombonera, em Buenos Aires, para votar em Macri. Foi hostilizado pela maioria dos presentes. No fim das contas, o apoio não foi suficiente para virar o jogo em favor da chapa encabeçada por Andrés Ibarra e que tinha o ex-presidente da Argentina como um dos principais líderes.

Crítico ferrenho das SADs

Riquelme havia declarado apoio ao peronista Sergio Massa na eleição presidencial argentina. Na reta final da campanha, quando explodiu a polêmica em torno das Sociedades Anônimas, o Boca chegou a divulgar um comunicado repudiando o modelo defendido por Milei.

“A vida do Boca Juniors está intrinsecamente ligada ao lugar onde nasceu, cresceu e assumiu a dimensão que hoje o tornou um movimento popular reconhecido no mundo. Por isso, estará sempre comprometido com a realidade social em que desenvolve suas atividades esportivas e culturais. Convencido do papel transcendente desempenhado pelos clubes na Argentina desde o início do século passado, o Boca Juniors é contra qualquer iniciativa que implique sua privatização ou venda”, afirmou a nota.

Na campanha para se tornar presidente do Boca, Riquelme assumiu uma postura ferrenha contra as SADs.

“O torcedor precisa saber que estamos diante das eleições mais fáceis da história. Esses senhores, quando voltarem, vão privatizar o clube, vão dá-lo aos três amigos que têm por aqui, e não se vota nunca mais. Isso não pode acontecer”, declarou o jogador, no mês passado.

A conta oficial de Riquelme no Instagram e o perfil de apoio à sua campanha, denominado Soy Bostero, publicaram conteúdos com o compromisso de não permitir a transformação do Boca em Sociedade Anônima.

Oposição de peso

A reação imediata dos principais clubes argentinos contra a ideia das SADs foi um prenúncio das dificuldades que o Governo Milei encontrará, caso queira seguir adiante com essa proposta.

Em 2018, quando ainda ocupava a presidência da Argentina, Macri tentou emplacar o projeto das Sociedades Anônimas, porém encontrou forte resistência por parte de clubes e torcedores.

O futebol argentino ainda estava traumatizado com o drama vivido pelo Racing, uma das equipes mais tradicionais do país e que quase precisou fechar as portas no fim da década retrasada, devido aos sucessivos pedidos de falência da Blanquiceleste S.A., empresa privada que havia assumido, mediante concessão, a gestão do futebol do clube e do Estádio El Cilindro.

A eleição de Riquelme no Boca representa um sério entrave para as Sociedades Anônimas no futebol da Argentina. Primeiro, porque sua campanha vitoriosa baseou-se no ataque direto a esse modelo e, de quebra, foi travada contra os principais fiadores dessa ideia (Macri e Milei).

O peso que o Boca Juniors possui não apenas no futebol, mas na própria sociedade argentina, representa outro complicador nessa história. Embora os percentuais exatos costumem variar dependendo da pesquisa, o clube azul e amarelo ocupa a liderança disparada em todos os rankings das maiores torcidas do país.

Alguns levantamentos, como o realizado pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) em 2016, mostraram a equipe com cerca de 40% da preferência do povo argentino. Já a pesquisa da Kantar, divulgada no fim do ano passado, indica que três em cada dez moradores do país são torcedores do Boca.

Para se ter uma ideia, a torcida do segundo colocado, o River Plate (que também se posicionou contra as SADs), representa entre 24% e 30% do total da população argentina. Racing, Independiente e San Lorenzo (outros que rechaçam o modelo de Sociedade Anônima) mobilizam fatias na casa dos 5% cada um.

Já a preferência das demais pessoas que se interessam por futebol na Argentina está pulverizada entre os outros clubes de Buenos Aires e do interior do país. Em torno de 15% dos argentinos afirmam não se importar com a modalidade.

A resistência do Boca, materializada na eleição do ex-camisa 10, representa uma dificuldade extrema para a implantação e consolidação das Sociedades Anônimas no futebol argentino, porque o time possui um peso desproporcional no mercado da nação sul-americana.

Eleição polêmica

A eleição do Boca Juniors, na Argentina, refletiu o clima de polarização que marca a política da América do Sul em tempos recentes. Tal como na disputa nacional, a votação no clube foi marcada por reviravoltas, tentativas de judicialização e radicalização ideológica.

A oposição chegou a recorrer ao Judiciário, contestando a participação de 13 mil associados no pleito. Segundo a denúncia, eles estariam inadimplentes e, portanto, inaptos a votar, mas ainda assim teriam sido tornados ativos pela situação, hoje comandada pelo presidente Jorge Amor Ameal, que concorreu como vice na chapa de Riquelme.

Inicialmente, a eleição chegou a ser suspensa, mas depois a Justiça decidiu que esses eleitores deveriam votar em mesas separadas. No fim das contas, ficou claro que os votos contestados não seriam suficientes para alterar o resultado final.

A disputa entre Riquelme e Macri teve contornos literários, já que contrapôs, de certa forma, criador e criatura. Mas, no caso, é difícil dizer quem criou e quem foi criado por quem.

Macri presidiu o Boca de 1995 a 2007, naquela que talvez tenha sido a era mais vitoriosa da história do clube, que venceu quatro Copas Libertadores sob seu comando.

Foi nesse período que Riquelme despontou como craque do time, sendo decisivo em três dessas conquistas, que foram essenciais para tornar Macri conhecido em todo o país, ostentando a fama de bom gestor.

Em 2005, o dirigente conseguiu eleger-se deputado. Dois anos depois, ao deixar a presidência do Boca, Macri elegeu-se prefeito de Buenos Aires. A partir daí, estava preparado o trampolim para o salto maior, que foi chegar à Casa Rosada em 2015, onde permaneceu até 2019.

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