Nos últimos tempos, o nome Green Bay Packers tem estado em alta no noticiário esportivo do país, uma vez que a equipe participará da primeira partida da National Football League (NFL) realizada no Brasil, diante do Philadelphia Eagles. O jogo será no dia 6 de setembro, a partir das 21h15 (horário de Brasília), na Neo Química Arena, estádio do Corinthians, localizado na capital paulista.
Esse fato acabou criando, por assim dizer, uma ligação entre a equipe de futebol americano (que, por ironia do destino, tem o verde como cor predominante do uniforme, a mesma do arquirrival do Corinthians, o Palmeiras) e o time brasileiro. Mas, em um momento em que o time alvinegro se vê em meio a uma grave crise, o Green Bay Packers pode representar muito mais do que um visitante ilustre de uma modalidade esportiva que ainda tenta se firmar no mercado brasileiro.
Com seu modelo de gestão único, o time da pequena Green Bay (cidade de pouco mais de 100 mil habitantes, localizada às margens do Lago Michigan, no estado norte-americano de Wisconsin) pode representar um caminho a ser seguido não apenas pelo Corinthians, mas também por outros gigantes do futebol brasileiro, como o Vasco, que lutam para superar a crise financeira, recobrar a competitividade e conquistar títulos.
Essa discussão vem a calhar, já que, na semana retrasada, circulou na imprensa a informação de que haveria uma negociação em curso entre o Corinthians e a empresa OTB Sports, que estaria interessada em assumir a gestão da equipe, no formato de Sociedade Anônima do Futebol (SAF) aberta, com parte das ações podendo ser negociadas no mercado financeiro e compradas por torcedores.
A notícia foi divulgada no dia 13 de julho pelo jornalista Juca Kfouri, na Folha de São Paulo, e depois confirmada pela própria OTB Sports, em publicação feita no Instagram. A empresa declarou que a proposta tinha como objetivo “a resolução da dívida integral do clube e um compromisso futuro de abertura de capital para proporcionar ao torcedor a possibilidade de se tornar acionista do seu time”. No dia seguinte, porém, o Corinthians emitiu uma nota rechaçando a negociação com a empresa.
Sociedade anônima sem donos
O que muita gente não sabe é que existe uma possibilidade de torcedores se tornarem acionistas de um time de massa estruturado como Sociedade Anônima (S.A.), mas em um modelo de gestão distinto desse proposto pela OTB Sports.
Nesse caso específico, a possível SAF do Corinthians (que ainda sequer existe) teria um investidor majoritário (a OTB), que ditaria os rumos do futebol da equipe. Os torcedores que eventualmente adquirissem ações seriam, na prática, investidores, podendo negociar os papéis no mercado financeiro e ainda ser remunerados com lucros e dividendos nos anos em que as contas do time ficassem positivas.
O Green Bay Packers pode ser uma alternativa para que um time de massa do futebol brasileiro venha a ter torcedores como acionistas, mas sem a necessidade de um grande investidor assumindo o controle do time. Lá, a torcida é dona do time de fato, o que o torna uma “S.A. do povo”.
Em um artigo publicado na última sexta-feira (19) na Máquina do Esporte, o advogado especialista em direito societário José Luis Camargo Jr. e o consultor, professor e doutor em estratégica de marketing José Sarkis Arakelian analisaram o modelo de gestão do Green Bay Packers.
No texto, os autores também apresentam uma série de ideias para que esse formato adotado pelo time da NFL possa ser adaptado pelas SAFs brasileiras.
“Esse modelo é único no mundo. Eu diria que é quase utópico. Não existe nada mais democrático em matéria de gestão”, afirmou Camargo, em entrevista à Máquina do Esporte.
Diferenças com as SAFs brasileiras
Até o momento, nenhuma das SAFs criadas no Brasil adotou o modelo de abertura de capital. A maioria delas, como Botafogo, Vasco, Bahia, Cruzeiro e Coritiba, acabou sendo vendida a grandes grupos econômicos, sendo que alguns estão sediados fora do Brasil.
O Fortaleza é um dos raros casos de um clube que virou SAF, mas ainda não fechou com um grande investidor. Se a proposta da OTB Sports avançasse, o Corinthians seria a primeira Sociedade Anônima de capital aberto do futebol brasileiro. Mas seu modelo estaria distante do que existe hoje no Green Bay Packers.
Lá, explicou Camargo, o time funciona como uma Sociedade Anônima de capital fechado desde a década de 1920. As emissões primárias de ações têm o objetivo de captar recursos junto aos torcedores, que não são investidores, ou seja, eles não podem vender para terceiros sua participação na equipe (apenas transmitir a herdeiros diretos; outra possibilidade é o próprio time recomprar de volta, por um valor simbólico), tampouco recebem remuneração, caso a franquia obtenha algum lucro.
Sempre que as contas fecham o ano positivas, o dinheiro é obrigatoriamente reinvestido no próprio time, de modo a garantir que ele seja competitivo na próxima temporada.
“Só investe em um tipo de ação dessas quem é apaixonado pelo esporte. Portanto, o modelo do Green Bay poderia funcionar, aqui no Brasil, em um time de massa, com uma grande quantidade de torcedores aficionados”, disse Camargo.
Na prática, a propriedade das ações dá aos torcedores o direito de votar nas assembleias de acionistas, ajudando a definir os rumos do time e a escolher seu presidente.
As regras da Sociedade Anônima do time norte-americano também limitam a quantidade de ações que cada indivíduo pode comprar, de modo a evitar que um investidor ou grupo econômico assuma o controle da equipe.
“Uma 777 Partners jamais conseguiria comprar o Green Bay Packers”, ponderou Camargo.
A última emissão primária realizada pelo Green Bay Packers ocorreu na temporada 2021/2022, com cada ação sendo vendida a US$ 300. O time conseguiu captar US$ 66 milhões (algo em torno de R$ 366 milhões, pela cotação atual), junto a 176.160 torcedores. Hoje, a equipe conta com 537 mil acionistas individuais.
Para se ter uma ideia, esse valor representa praticamente o mesmo que o empresário norte-americano John Textor gastará até 2025 na compra da SAF do Botafogo, fechada em 2022, mas paga em quatro parcelas, que totalizarão R$ 366,1 milhões.
Grande parte do arrecadado pelo Green Bay Packers em sua última emissão primária foi investido em melhorias no Estádio Lambeau Field. Inaugurado em 1957, o local passou por diversas ampliações e modernizações, e hoje tem capacidade para acomodar mais de 81 mil torcedores (quase a população inteira da cidade).
Desafios
Por ser uma S.A. sem fins lucrativos, o Green Bay acaba por adotar regras de transparência mais fortes em comparação às demais franquias da NFL. O time costuma divulgar em seu relatório financeiro, por exemplo, não apenas aquilo que fatura com suas operações locais, mas também todo o montante que recebe da liga ao longo da temporada.
É justamente a partir dos balanços do Green Bay Packers que a mídia internacional consegue calcular as receitas compartilhadas da NFL a cada ano. Entre 2022 e 2023, por exemplo, elas cresceram 7,5%, alcançando US$ 12,873 bilhões (R$ 71,3 bilhões).
De acordo com José Luis Camargo Jr., a credibilidade seria justamente um dos maiores desafios para que um modelo como o do time norte-americano pudesse prosperar no futebol brasileiro.
“O torcedor que compra a ação precisa ter a certeza de que o dinheiro será bem administrado. No Palmeiras da Leila Pereira, por exemplo, essa missão talvez fosse mais fácil. Já em um clube afundado no caos financeiro, seria uma tarefa mais complicada”, explicou.
Para ele, o modelo de S.A. do Green Bay Packers é uma opção que mereceria ser analisada com atenção pelos grandes times do futebol brasileiro. Na entrevista, ele citou nominalmente o Vasco, que, recentemente, rompeu com a 777 Partners, empresa que está afundada em uma grave crise.
“Hoje, o clube é presidido pelo Pedrinho, que é um ídolo e teria credibilidade para mobilizar os torcedores em torno de um novo formato”, concluiu.