Vinícius Júnior vira liderança contra o racismo, mas especialistas veem caminho longo para superar problema

Vini Jr. se ajoelha em manifestação contra o racismo antes do amistoso da seleção brasileira contra Guiné - Reprodução / Instagram (@vinijr)

Por conta dos seguidos insultos que recebeu durante a última temporada da LaLiga e de suas reações indignadas, Vinícius Júnior se tornou a grande liderança na luta antirracista no futebol, tanto no Brasil como no exterior. Para especialistas, o jogador do Real Madrid pode se tornar uma figura fundamental de transformação em sociedades racistas como a brasileira e a espanhola.

“O Vini Jr. é uma pessoa altamente corajosa porque é bastante visado. Quantas vezes ele sofreu isso [atos de racismo] nos últimos anos? Ele é o alvo principal. Em nenhum momento recuou”, destacou Donald Verônico, doutorando na Escola de Educação Física e Esporte da USP (EEFE-USP), que estuda questões raciais e gestão do esporte.

Para especialistas na questão, Vinícius Júnior é representante de uma geração que não se cala mais diante de problemas sociais e faz questão de se posicionar.

“Não foi uma surpresa ver atletas da geração dele falando [sobre racismo]. Temos outros atletas jovens como ele que vêm falando do tema. Mas nenhum deles com essa representatividade que tem o Vinícius Júnior”, analisou Marcelo Carvalho, diretor executivo do Observatório de Discriminação Racial no Futebol.

“A surpresa é principalmente porque o histórico de atletas no Brasil não é esse, principalmente pelo medo que se tem de as portas serem fechadas para quem fala sobre o tema. Então, por isso, é uma grata surpresa ver o Vinícius Júnior nessa posição e com essa veemência que ele tem falado sobre o tema”, acrescentou.

Mudança

A resposta mais contundente ao racismo é um ativismo mais comum de acontecer nas grandes ligas dos Estados Unidos. Em 2020, por exemplo, os jogadores da NBA, sob liderança de nomes como LeBron James, decidiram paralisar o campeonato em um protesto após Jakob Blake, um homem negro morador do estado de Wisconsin, levar quatro tiros pelas costas durante uma abordagem policial. Blake sobreviveu ao ataque, mas ficou paralisado da cintura para baixo.

No futebol, um marco aconteceu em 2020, quando jogadores do PSG e do Istanbul Basaksehir decidiram abandonar um jogo da fase de grupos da Champions League quando o quarto árbitro Sebastian Coltescu foi acusado de cometer uma ofensa racista contra um membro do banco de reservas do time turco. O jogo, válido pela edição de 2020/2021, foi retomado dias depois, com a exclusão do romeno da partida.

Mas nenhum caso ganhou a dimensão das ofensas racistas feitas pela torcida do Valencia contra Vini Jr., do Real Madrid, durante o jogo no Estádio Mestalla, pelo Campeonato Espanhol. A reação contundente do brasileiro na partida e em suas redes sociais ganhou enorme repercussão.

Vini Jr. ganhou o apoio de outros grandes jogadores do futebol mundial, como Kylian Mbappé e Neymar. Os incidentes atingiram em cheio a reputação da LaLiga, que demorou a agir e geriu muito mal sua crise de imagem.

Para se ter uma ideia, ganhou mais visibilidade o bate-boca entre Vini Jr. e o presidente da liga espanhola, Javier Tebas, nas redes sociais do que as medidas da LaLiga para tentar enfrentar o problema. Tebas acabou pedindo desculpas ao brasileiro, que chegou até a cogitar deixar o Real Madrid e a LaLiga em um post que publicou no Instagram.

Embora não tenha perdido nenhum patrocinador por causa do acontecimento, a liga espanhola colocou as empresas que apoiam o campeonato em uma situação constrangedora. Ativações de patrocínio foram evitadas para não colocar em evidência a relação comercial com um campeonato acusado de ser conivente com atos racistas de torcedores.

“Existe racismo, há pessoas racistas, mas ninguém quer carregar a pecha de racista. A LaLiga quer se desvincular disso. É péssimo para a imagem deles. Publicaram que vão tomar providências, mas, a princípio, só medidas paliativas, faixas e dizeres. Isso não resolve”, enfatizou Donald Verônico.

Fifa e CBF

Vinícius Júnior gerou ações da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e da Federação Internacional de Futebol (Fifa). A CBF marcou um amistoso contra Guiné, realizado no último sábado (17), em Barcelona (Espanha), com diversas ações para denunciar e combater o racismo. Uma delas foi que, pela primeira vez na história, a equipe nacional utilizou uma camisa preta, durante o primeiro tempo do confronto.

Já a Fifa resolveu ressuscitar seu Comitê Antirracismo, colocando Vini Jr. como chefe dos trabalhos da comissão. O presidente da entidade, Gianni Infantino, também chegou a dizer que pediria para o brasileiro que sugerisse outros nomes para integrar o comitê.

A comissão havia sido criada em 2013, durante a presidência de Joseph Blatter, que nomeou Jeffrey Webb, então vice-presidente da Fifa, como chefe. O comitê encerrou os trabalhos três anos depois sem nenhuma medida efetiva para combater o problema.

“Tiveram que ocorrer vários casos de racismo contra o Vinícius Júnior para que a Fifa decidisse recriar o comitê. Mas também penso que precisamos ter muito cuidado em colocar o Vinícius Júnior como o principal responsável por tudo isso. Ele precisa direcionar a força dele para o futebol”, ponderou Marcelo Carvalho.

“O Vinícius Júnior pode até ser o rosto de campanhas, mas ele tem que estar preocupado com o rendimento dele em campo. Não vai poder ir em uma reunião na Fifa no meio do campeonato”

Marcelo Carvalho, diretor executivo do Observatório de Discriminação Racial no Futebol

Para Carvalho, o fato de ter ficado marcado como ativista contra o racismo e de outras causas sociais atrapalhou a carreira de Roger Machado, um dos poucos treinadores negros no futebol brasileiro.

“O Roger Machado, o Jair Ventura e tantos outros querem conquistar o espaço deles como treinadores e não como militantes. Quando o Roger foi cogitado para dirigir o Corinthians, uma parcela das redes sociais foi contrária à contratação dele porque ele é um cara que se posiciona”, comentou.

Luta antirracista

A luta contra o racismo vinda de ídolos do futebol já começa a refletir entre os brasileiros. Em uma pesquisa on-line divulgada recentemente pela agência Armatore Market+Science, 80,6% dos fãs de futebol apoiariam que seu próprio time fosse punido, caso houvesse manifestações racistas entre os torcedores.

Entre os brasileiros, 73,1% disseram que deixariam de apoiar seu próprio clube ou ligas que não combatessem o racismo. Já 78,8% afirmaram que deixariam de comprar produtos de marcas que patrocinem clubes que fossem coniventes com atos racistas.

“Dar multa, perder pontos, ser rebaixado são punições que vão obrigar os clubes a agir dentro do estádio. Isso vai inibir torcedores racistas de se manifestarem no futebol, mas não vai resolver uma questão sistêmica que acontece na sociedade”

Donald Verônico, pesquisador sobre racismo

De fato, 135 anos após a abolição da escravidão no Brasil, ainda é comum acontecer incidentes racistas, dentro ou fora dos gramados. Apesar da maioria da torcida apoiar o combate ao preconceito, insultos raciais ainda são comuns, seja no futebol brasileiro ou no espanhol. É difícil não ser pessimista diante dessa situação?

“Sou muito otimista. A história está acontecendo diante dos nossos olhos. Se a gente pensar, é um marco não só a seleção brasileira usar uma camisa preta, mas usar o espaço dela para falar sobre racismo. A CBF tem 109 anos e foi a primeira vez que teve um posicionamento mais contundente”, afirmou Carvalho.

Para ele, o futebol não vencerá o racismo só com campanhas publicitárias, mas com punições duras contra quem cometer atos racistas. Em uma visão mais ampla, que abarque toda a sociedade, essa luta necessita de conscientização sobre o problema, educação para as novas gerações e garantia de dar oportunidades mais igualitárias.

“Não vamos nos tornar uma sociedade menos racista enquanto tivermos uma parcela tão grande da sociedade, a população negra, fora dos espaços de gestão. Precisamos implantar sistemas de inclusão e diversidade nesses locais de comando”, explicou Carvalho.

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