Principal competição de clubes do país, a Série A do Campeonato Brasileiro de Futebol atravessa um momento peculiar. Por décadas, o país se consolidou como exportador de craques, reproduzindo, em escala futebolística, o modelo da divisão internacional de trabalho que vigora na economia internacional, em que os países de continentes como América Latina e África fornecem matérias-primas de menor valor agregado, enquanto as nações desenvolvidas comercializam produtos repletos de tecnologia e com elevados preços em troca.
O Brasil tem o talento, mas quem tem conquistado projeção internacional com os nossos craques, nas últimas décadas, são os clubes europeus. Em tempos recentes, no entanto, algo parece estar mudando nesse cenário. O movimento ainda pode parecer incipiente para os padrões globais, mas traz impactos significativos, que são sentidos por todos, especialmente pelos torcedores.
Embalada pelo dinheiro das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs) e em meio à disputa bilionária entre os dois grandes blocos comerciais que se digladiam pela hegemonia sobre a venda dos direitos de transmissão, a Série A do Brasileirão tenta se firmar como um dos grandes campeonatos emergentes fora da Europa.
Se é verdade que os nossos craques mais competitivos seguem atuando em competições mais poderosas como Premier League e LaLiga, também é igualmente fato que, hoje, o futebol brasileiro vem sendo encarado como uma alternativa real para jogadores que ainda têm algo a oferecer e que, em outros tempos, estariam buscando emprego em outros mercados, como o futebol asiático.
Grandes contratações
Neste ano, o mercado nacional vem sendo sacudido por grandes contratações (para os padrões brasileiros) feitas por clubes que disputam a Série A.
A agitação teve início no 1º semestre, com a vinda de Luis Suárez para o Grêmio. O Flamengo aproveitou para repatriar o ídolo Gerson. De junho em diante, a movimentação se intensificou, sobretudo após a abertura da janela de transferências, entre 3 de julho e 2 de agosto.
Entre as contratações de peso ocorridas nos últimos meses, merecem menção a do equatoriano Enner Valencia (Internacional), que disputou a última Copa do Mundo com certo destaque, e a do colombiano James Rodríguez (São Paulo). O clube gaúcho também aproveitou para trazer o goleiro Sergio Rochet, que defende a seleção uruguaia, enquanto o time do Morumbi repatriou Lucas Moura, que acabou por se tornar peça decisiva na classificação da equipe na semifinal da Copa do Brasil, diante do Corinthians.
Mesmo o Vasco, que atravessa um momento complicado no Brasileirão (está em penúltimo na classificação geral), anunciou recentemente a contratação do francês Dimitri Payet. E por falar em jogador europeu (ainda que naturalizado), não podemos esquecer dos casos de Hugo Mallo e de seu “compatriota” nascido no Brasil Diego Costa, anunciados, respectivamente, por Internacional e Botafogo.
Libra x LFF
Nos últimos meses, além das contratações bombásticas, o Brasileirão também tem sido sacudido pela polêmica envolvendo os dois blocos comerciais que disputam a hegemonia no processo de criação de uma futura liga nacional de futebol, que ficaria responsável por organizar as principais divisões profissionais do país.
De um lado, está a Liga do Futebol Brasileiro (Libra), que hoje reúne 17 clubes das Séries A e B: ABC, Atlético-MG, Bahia, Corinthians, Flamengo, Grêmio, Guarani, Ituano, Mirassol, Novorizontino, Palmeiras, Ponte Preta, Red Bull Bragantino, Sampaio Corrêa, Santos, São Paulo e Vitória.
Do outro, está a Liga Forte Futebol (LFF), que congrega 23 times das três principais divisões do Brasileirão: Athletico-PR, América-MG, Atlético-GO, Avaí, Brusque, Chapecoense, Ceará, Criciúma, CRB, CSA, Cuiabá, Figueirense, Fluminense, Fortaleza, Goiás, Internacional, Juventude, Londrina, Náutico, Operário-PR, Sport, Tombense e Vila Nova. Há ainda o Grupo União, formado por Botafogo, Coritiba, Cruzeiro e Vasco, todos SAFs.
A disputa, marcada por idas e vindas de integrantes dos blocos comerciais, aparenta ser entre times, mas, na verdade, envolve grandes grupos de investimento internacionais. A Libra possui um acordo com o Mubadala Capital, um dos principais fundos soberanos de Abu Dhabi, comandado pelo xeque Mohamed bin Zayed, atual presidente dos Emirados Árabes Unidos.
A LFF e o União, por seu turno, são parceiros da brasileira Life Capital Partners e da norte-americana Serengeti Asset Management, em um acordo intermediado pela XP Investimentos. E assim, o que era para ser a discussão em torno da criação de uma liga unificada de clubes para organizar, gerir e comercializar direitos de transmissão do Brasileirão, acabou se tornando uma queda de braço entre investidores estrangeiros pelo controle, a longo prazo, de um percentual das cotas de TV pertencentes aos clubes.
O Mubadala pretende adquirir 12,5% dos direitos comerciais de um bloco de times (o valor a ser pago dependerá do número de equipes que assinarem o contrato) ou 20% desse montante, por R$ 4,75 bilhões, no caso de haver a formação de uma liga unificada com a participação dos clubes que hoje integram a Libra.
No caso da LFF, o combinado com a Serengeti e a Life Capital Partners é da venda de 20% dos direitos comerciais de 23 clubes que integram o bloco pela quantia equivalente a R$ 2,3 bilhões. Os clubes do Grupo União também optaram por esse grupo de investidores. Neste caso, a duração do negócio seria também de 50 anos.
Além dos grandes grupos de investimentos, a disputa Libra x LFF reside no sistema de distribuição do dinheiro relativo aos direitos de transmissão. No primeiro grupo, o modelo proposto seria mais benéfico a Corinthians e Flamengo, os dois clubes de maior torcida do país e que levam a maior fatia do bolo no contrato atualmente em vigor.
A Liga Forte Futebol, por sua vez, defende um sistema em que a diferença entre as maiores e menores cotas de transmissão na Série A não ultrapassassem 3,5 vezes.
A expectativa é de que a liga nacional de futebol possa começar a funcionar em 2025. Os impasses recorrentes que vêm surgindo no decorrer dessa caminhada lançam dúvidas quanto às chances reais dessa hipótese se concretizar.
SAFs
Um fator que tem chamado a atenção no Brasileirão atual é a quantidade expressiva de clubes geridos por SAFs. A adoção desse modelo de gestão por agremiações tradicionais veio acompanhada de notícias sobre investimentos vultuosos, que por vezes ultrapassam a casa dos bilhões de reais.
Atualmente, enquadram-se nesse modelo: Atlético-MG, Bahia, Botafogo, Cruzeiro, Cuiabá, Coritiba e Vasco. Há ainda o caso do Red Bull Bragantino, que é controlado por uma empresa (a conhecida fabricante austríaca de bebidas energéticas), mas em um modelo distinto das Sociedades Anônimas.
No caso dos seis clubes citados acima e que funcionam de fato e de direito como SAFs, o grau de êxito nos gramados vem sendo muito distinto para cada um. O Brasileirão 2023 é a primeira edição em que uma equipe que adota esse modelo de gestão vem liderando a tabela por diversas rodadas seguidas.
Disparado no topo da classificação, o Botafogo, de John Textor, é a mais antiga dessas SAFs, tendo aderido ao sistema em 2021. Na outra ponta da tabela, também estão Sociedades Anônimas. O Coritiba, que aprovou, em junho deste ano, a venda de 90% de seu capital à Treecorp, está em 18º na Série A, com 14 pontos conquistados.
Logo abaixo dele, em penúltimo lugar, vem o Vasco, que, em 2022, entregou o controle de 70% de seu departamento de futebol à 777 Partners, dos Estados Unidos, com a promessa de receber R$ 700 milhões em investimentos até 2026, além de a empresa assumir outros R$ 700 milhões em dívidas do clube.
Vale lembrar que, no início deste ano, o Vasco havia sido o clube brasileiro que mais investiu em reforços, com quase R$ 90 milhões gastos.
As contratações mais caras do clube foram as de Luca Orellano, trazido do Vélez Sarsfield pelo equivalente a R$ 20,7 milhões; Lucas Piton, que estava no Corinthians e custou R$ 16,5 milhões (pagos de forma parcelada); e Léo, vindo do São Paulo por R$ 16 milhões. Até o momento, o Vasco obteve apenas três vitórias em 18 partidas disputadas na Série A do Brasileirão. A equipe marcou 14 gols na competição e sofreu 29.
Desafios e limitações
O CEO da Armatore Market+Science e colunista da Máquina do Esporte, Fernando Fleury, acredita que o futebol profissional do país caminha para uma profissionalização no que diz respeito à venda do Campeonato Brasileiro, enquanto produto comercial. Mas que, ainda assim, a competição nacional tende a permanecer muito distante de se tornar uma liga propriamente dita, principalmente se comparada aos campeonatos dos Estados Unidos.
Ele reconhece que os investimentos dos blocos comerciais, aliados à entrada das SAFs, trazem para o futebol brasileiro uma injeção de capital diferente de tudo o que já foi visto no esporte do país.
“Mas, mesmo com essa injeção, os clubes continuam com dificuldade de manter suas revelações e estão contratando atletas de renome já em fim de carreira”, ponderou o especialista.
Com relação à possibilidade de o Brasileirão despontar como uma competição emergente no cenário internacional, Fleury faz algumas observações. Ele acredita que, do ponto de vista da audiência e do público consumidor, o campeonato tem condições de se destacar, mas faz uma ressalva.
“Desde que acertemos os horários de algumas partidas e possamos vender a competição para os Estados Unidos e, principalmente, para a Europa. Também será importante melhorar a estrutura dos gramados, criando um padrão a ser utilizado pelas equipes”, pontuou.
Na visão do especialista, para que o produto tenha sucesso lá fora, ele precisa antes ser bem-sucedido aqui dentro.
“Ou seja, nossos estádios têm que ter uma taxa de ocupação melhor, para que o espetáculo ganhe alma. Um estádio vazio é demonstração de um péssimo produto. E ninguém compra produto de péssima qualidade”, afirmou.
Fleury acredita também que, para os atletas, o Brasileirão ainda não pode ser considerado um mercado emergente, pelo menos a curto e médio prazo.
“Nossa estrutura financeira não permite competir com a Europa e o Oriente Médio. E ainda temos o futebol dos Estados Unidos, que vem crescendo, recebendo mais investimentos e com uma tendência de alta já há alguns anos. Tanto que o futebol (soccer) já é o esporte mais praticado entre os adolescentes americanos”, finalizou.