Diante do título, é compreensível que o leitor associe de imediato a promessa de uma investigação sobre escândalos de gestão no futebol, reflexo de um imaginário recente em que denúncias e más práticas ganharam tanto espaço. Mas, ainda que essa expectativa seja legítima, o caminho a ser seguido nesta coluna será distinto.
Não se trata de um relato sobre desvios ou crises, mas de uma reflexão sobre o mecanismo que assegura vitalidade ao esporte brasileiro além do futebol. Protagonistas indiscutíveis, as loterias ocupam papel central e benéfico no fortalecimento do esporte olímpico e paralímpico.
Em primeiro lugar, precisamos partir de uma premissa comum: o esporte brasileiro não se resume ao futebol. É um conjunto vasto, formado por dezenas de modalidades. Para adotarmos um número palpável, basta olhar para o programa dos Jogos de Los Angeles 2028: serão 36 modalidades olímpicas e 23 paralímpicas. É nesse universo que a pergunta “quem custeia o esporte brasileiro para além do futebol?” ganha relevância.
A excepcionalização do futebol, aliás, tem uma razão clara: porque ele é uma grande exceção. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) é a única entidade de administração esportiva do país que, voluntariamente, renuncia à percepção dos recursos oriundos das loterias.
Em outras palavras: enquanto quase todo o sistema esportivo brasileiro depende desses repasses, o futebol se financia com receitas próprias, oriundas de direitos de transmissão, patrocínios e, mais recentemente, com a entrada maciça das casas de apostas. Só em 2023, esses patrocínios já movimentavam mais de R$ 630 milhões, valor comparável ao total dos recursos de origens lotéricas repassados ao Comitê Olímpico do Brasil (COB) e ao Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) somados. Essa disparidade ajuda a dimensionar o quanto o futebol vive em uma realidade financeira distinta das demais modalidades.
O marco legal dessa engrenagem financeira remonta à chamada Lei Agnelo/Piva (Lei nº 10.264/2001), que alterou o artigo 56 da Lei Pelé e destinou uma parcela da arrecadação das loterias ao COB e ao CPB. Com o tempo, a repartição foi ampliada também ao Comitê Brasileiro de Clubes (CBC), à Confederação Brasileira do Desporto Escolar (CBDE) e à Confederação Brasileira do Desporto Universitário (CBDU).
É interessante lembrar que, embora o mecanismo da destinação de recursos das loterias tenha se consolidado a partir dos anos 2000, o uso da receita lotérica para fins esportivos não é recente no Brasil. Desde meados da década de 1960, já se discutia a criação de loterias com finalidades específicas de financiamento público. A Lei Agnelo/Piva apenas formalizou e sistematizou essa política, permitindo que o esporte olímpico e paralímpico tivesse uma fonte regular de financiamento extraorçamentário.
Hoje, a destinação é regulada pela Lei nº 13.756/2018, que prevê o repasse de 1,7% do produto da arrecadação das loterias federais ao COB e de 0,96% ao CPB. Em 2024, esses percentuais se traduziram em aproximadamente R$ 445 milhões ao COB e R$ 247 milhões ao CPB.
Segundo o art. 23 da mesma lei, os recursos devem ser usados para fomentar, desenvolver e manter o esporte, custear formação e capacitação de profissionais, financiar a preparação técnica e a participação de atletas em competições, além de despesas de transporte, logística, manutenção de centros de treinamento e parte das despesas administrativas.
A aplicação pode ocorrer de forma direta (quando o COB ou o CPB utilizam os valores em seus próprios programas e estruturas) ou descentralizada (quando repassam parte dos recursos às confederações esportivas filiadas ou reconhecidas). A descentralização é particularmente importante: é por meio dela que o dinheiro chega até a base da pirâmide esportiva, garantindo a sobrevivência financeira de modalidades que dificilmente atrairiam patrocínio privado. Sem esses repasses, dificilmente haveria estrutura de treinamento ou condições de participação em competições internacionais, por exemplo.
Vale notar que, a partir de meados da década de 2010, houve uma mudança estrutural no financiamento esportivo no Brasil. O orçamento público federal perdeu protagonismo, enquanto os recursos extraorçamentários, como são tecnicamente classificáveis os provenientes das loterias, e os chamados gastos tributários (isenções e renúncias fiscais) passaram a ocupar o centro da matriz de financiamento. Entre 2017 e 2022, pesquisas identificaram um aumento expressivo da centralidade dos recursos lotéricos, consolidando-os como a principal subfonte de financiamento do esporte.
Em um diagnóstico sobre a matriz de subsídios das entidades esportivas, o Tribunal de Contas da União (TCU), no Acórdão nº 1785/2015-Plenário, apontou que os recursos das loterias já representavam, à época, praticamente a totalidade do financiamento das confederações esportivas. O levantamento revelou que o patrocínio privado respondia por apenas 1,63% do orçamento do desporto olímpico e por 1% do paralímpico. Em resumo: sem as loterias, a maioria das modalidades não teria como custear nem suas despesas correntes.
É importante destacar, ainda, que, para acessar esses recursos, as entidades precisam cumprir uma série de requisitos e obter a certificação do Ministério do Esporte. A Lei Pelé, em seus artigos 18 e 18-A, regulamentados pela Portaria ME nº 115/2018, exige regularidade fiscal e trabalhista, limite de mandatos de dirigentes (quatro anos, com uma recondução), transparência na gestão e representação de atletas em órgãos colegiados. Esses dispositivos deveriam ser substituídos pelo art. 36 da Lei Geral do Esporte, mas, como a revogação da Lei Pelé foi objeto de veto, ainda não apreciado, a regulação da legislação anterior segue em vigor.
Diante de tudo isso, uma conclusão se impõe: o esporte brasileiro, à exceção do futebol, depende quase integralmente dos recursos lotéricos. Trata-se de uma dependência estrutural, que garante a sobrevivência de modalidades e atletas, mas que também expõe fragilidades, como a volatilidade da arrecadação, a concentração de fontes e a ausência de diversificação de receitas.
O desafio, portanto, não é entender quem financia o esporte no Brasil, mas refletir sobre como construir um modelo sustentável, capaz de equilibrar recursos lotéricos, públicos e privados. Até lá, a resposta à pergunta do título é quase única: quem custeia o esporte brasileiro, em sua imensa diversidade, são as loterias.
Alice Maria Augusto é advogada do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB). Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), atualmente faz pós-graduação em Direito Desportivo e Negócios do Esporte pelo Centro de Direito Internacional (Cedin)
Conheça nossos colunistas