No marketing esportivo, estamos acostumados a debater a precificação de ingressos, o ingresso de temporada (season ticket) ideal e estratégias de gestão de oferta (yield management) para maximizar a receita em dias de jogo (matchday). Então, quando um clube profissional do porte do Fortuna Düsseldorf, da Alemanha, que atualmente disputa a Bundesliga 2, anuncia um plano para, eventualmente, zerar o custo dos seus ingressos, a reação inicial do mercado varia entre o choque e a incredulidade.
O projeto “Fortuna für Alle” (“Fortuna para Todos”, em tradução livre) é, à primeira vista, um movimento radical. Mas uma análise fria do negócio revela que não se trata de filantropia. Trata-se de uma das mais calculadas e brilhantes estratégias de inteligência de negócios (business intelligence) e gestão de relacionamento com o cliente (CRM) em curso no futebol nos dias atuais.
O Fortuna Düsseldorf não está rasgando dinheiro. Está trocando uma fonte de receita volátil e transacional (venda de ingressos, que representava algo entre € 7 milhões e € 8 milhões) por um modelo de faturamento muito mais robusto, previsível e escalável.
A troca: Receita transacional por receita estratégica
A matemática financeira do projeto é a primeira camada da análise. Para viabilizar os portões abertos, o clube fechou contratos de patrocínio de longo prazo, estimados em € 45 milhões por cinco anos, com parceiros como Hewlett Packard Enterprise (HPE) e Targobank.
Esses parceiros não estão apenas comprando exposição estática em um backdrop. Eles estão comprando um estádio consistentemente lotado (mais de 50 mil pessoas), uma narrativa de marca extremamente positiva (acesso, comunidade, inclusão) e, o mais importante, acesso a uma enorme quantidade de dados qualificados.
O clube deixa de ser dependente do desempenho em campo ou da atratividade do adversário para garantir a receita da partida. Ele a fixa no balanço, via patrocínio, e transforma o jogo em si em uma plataforma de ativação e aquisição.
O “ingresso grátis” como ferramenta de CRM
Aqui reside o núcleo da estratégia. O “Fortuna für Alle” é, em sua essência, um dos maiores cases de geração de leads (lead generation) e aquisição de dados primeira parte (first-party) que o futebol europeu já viu.
O ingresso não é simplesmente distribuído na rua. Para obtê-lo, o torcedor precisa se cadastrar em uma plataforma, fornecendo dados pessoais valiosos. O clube está, efetivamente, “comprando” esses dados ao custo de um assento.
Enquanto a maioria dos clubes luta para conhecer quem são os torcedores que compram ingressos avulsos (muitas vezes em pontos de venda físicos ou por meio de terceiros), o Fortuna está construindo um banco de dados proprietário e massivo.
Eles passam a saber quem é o torcedor casual, o torcedor de primeira viagem, o jovem que antes não tinha recursos para ir ao estádio. Cada cadastro é o ponto zero na jornada de um novo cliente, que agora pode ser segmentado e nutrido. O clube troca a pergunta “como vendemos 50 mil ingressos?” pela pergunta “o que vendemos para 50 mil fãs que já conhecemos?”.
Maximizando a receita em dias de jogo e o LTV
Com o estádio cheio, o clube capitaliza de formas secundárias, mas altamente lucrativas. O CEO do Fortuna, Alexander Jobst, já reportou aumentos de 50% nas vendas de mercadorias e de 50% nas receitas de patrocínio desde o início do projeto.
É lógico: 50 mil pessoas consomem exponencialmente mais alimentos, bebidas e produtos oficiais do que a média de antes (30 mil). A atmosfera vibrante melhora o “produto” em si, tornando a experiência mais valiosa e aumentando a propensão ao consumo.
E mais importante ainda: o clube está investindo no Lifetime Value (LTV) (métrica que estima o lucro total que um cliente gera para uma empresa durante todo o período de relacionamento) do torcedor. Ao remover a principal barreira de entrada (o preço), o Fortuna está “adquirindo” a próxima geração de fãs. Famílias, estudantes e jovens que criam um laço afetivo com o clube hoje, por causa da gratuidade, são os compradores de camisas, sócios-torcedores e clientes de hospitalidade de amanhã.
O Fortuna Düsseldorf não aboliu sua receita. Ele apenas parou de cobrar na porta de entrada. Ao fazer isso, transformou seu estádio em uma poderosa ferramenta de aquisição de dados, qualificou sua base de fãs e criou um ecossistema em que patrocinadores pagam pela plataforma e torcedores geram receita por meio do consumo e do engajamento.
É um modelo que desafia o status quo e prova que, no marketing esportivo moderno, o ativo mais valioso não é o ingresso, é o relacionamento com quem o utiliza.
O artigo acima reflete a opinião do colunista e não necessariamente a da Máquina do Esporte
Samanta Vicentini é especialista em Gestão de Relacionamento com o Cliente (CRM) e estratégias de relacionamento e fidelização de fãs. Com passagens nos programas de sócio-torcedor de Flamengo, Palmeiras e Vasco, acumula experiência no uso de dados para fortalecer o vínculo entre clubes e torcedores, gerando recordes de retenção e faturamento
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