Já faz um bom tempo, mas talvez você se lembre quando Branco ajeitou a bola na intermediária e mandou um foguete de perna esquerda para colocar o Brasil nas semifinais da Copa do Mundo de 1994. O 3×2 contra a Holanda foi um dos grandes jogos da história dos Mundiais. O palco do duelo foi o Cotton Bowl, em Dallas. Com mais de 90 mil lugares e quase 100 anos de história, é o maior estádio dos EUA sem jogos frequentes de um grande time profissional ou universitário. Quem paga a conta pela manutenção do estádio é a cidade de Dallas.
Dias antes do confronto contra a Holanda, o Brasil havia enfrentado a Suécia pela fase de grupos daquela Copa. O palco do empate por 1×1 foi o Pontiac Silverdome, em Detroit. No local onde Romário e Kennet Andersson marcaram, hoje está um centro de distribuição da Amazon.
Dos nove estádios usados para a disputa daquele mundial conquistado pelo Brasil, nenhum será usado na Copa de 2026. Três já foram demolidos, Pontiac Silverdome, Giants Stadium e Foxboro Stadium, e um está caindo aos pedaços, o RFK Memorial. Ainda assim, o comitê organizador não teve qualquer dificuldade para encontrar locais para os jogos.
Dos onze estádios americanos para a Copa de 2026, apenas dois não foram construídos no século XXI: o Arrowhead Stadium, em Kansas City, que foi reformado em 2010, e o Hard Rock Stadium, em Miami, reformulado em 2015. Ficaram de fora da Copa cidades com grandes arenas e população ligada ao futebol, como Nashville, Orlando, Cincinnati, Baltimore/Washington, Denver e Chicago, além de outras com estádios novinhos, como Mineápolis e Las Vegas.
E esses não são nem os maiores estádios em território americano. Os gigantes pertencem a universidades, que levam multidões às arquibancadas de lugares como o Michigan Stadium, com 107 mil lugares, o Beaver, de Penn State, com 106 mil, e o Ohio Stadium, de Ohio State, com 102 mil assentos. Só não fizeram parte do projeto porque jogos de universidades oferecem uma experiência diferente daqueles de equipes profissionais. São espaços mais simples, sem o grande número de camarotes e espaços corporativos, muito valorizados pela Fifa.
Para definir as onze cidades que receberão jogos da Copa de 2026, o comitê organizador precisou apenas realizar um processo seletivo. Sobram arenas e está tudo pronto. Mesmo para um país com uma indústria do esporte tão evoluída, a abundância de estádios nos EUA é impressionante. Mas, como sabemos, não é nada fácil construir e manter esses equipamentos. Então, o que exatamente acontece nos EUA?
Os donos de times de ligas americanas são, quase sempre, muito mais ligados aos próprios bolsos do que às comunidades em que as equipes estão. E, com as novas arenas, esses bilionários faturam mais ainda com ingressos mais caros, novas opções de camarotes e espaços corporativos, e até comidas e bebidas mais sofisticadas e com preços elevados.
Chame de chantagem, ameaça, ou simplesmente negociação. Basicamente, esses empresários avisam as cidades e condados que estão pensando em mudar o time para outro local, caso não tenham um novo estádio. A pressão dos times ganha força com o intangível, e o orgulho de ter um time na cidade faz cidadãos aceitarem os acordos feitos pelas autoridades com as franquias.
Quando coloca dinheiro, o poder público realoca recursos de outras áreas ou aumenta alguns impostos, geralmente cobrados de serviços para turistas, como aluguel de carro ou diária de hotel. Quando não coloca dinheiro, doa terreno, oferece incentivos fiscais ou subsídios e se compromete a melhorar a infraestrutura nos arredores do empreendimento.
Da NFL, equipes de Los Angeles, Boston e Nova York bancaram projetos nas últimas décadas com dinheiro próprio, mas Minnesota, Indianápolis, Seattle, Houston, Las Vegas, Denver, Cincinnati, Nashville, Baltimore e Filadélfia, por exemplo, contaram com grandes investimentos públicos. Cincinnati segurou a franquia com um acordo ruim para a cidade e ótimo pro Bengals, Baltimore tirou o então time de Cleveland com promessa de estádio, e San Diego perdeu o Chargers para Los Angeles porque não quis bancar uma nova casa para o time. Saint Louis e Oakland perderam times de forma parecida. Só para citar alguns exemplos.
Quando se trata dos palcos do futebol nos EUA, apenas Seattle, Atlanta e Boston têm jogos da MLS onde a Copa será disputada. A maior parte dos times investiu nos últimos anos em espaços específicos para futebol. Os projetos são feitos nos moldes dos da NFL, mas não serão usados no Mundial por terem capacidade menor. O maior deles, que acabou de ser inaugurado em Nashville, abriga apenas 30 mil torcedores. Cidades como Columbus, Cincinnati, Los Angeles, Austin e Orlando também tiveram estádios construídos nos últimos anos.
Uma reportagem do site de notícias Vox mostra que mais de US$ 7 bilhões em dinheiro público foram direcionados para esses empreendimentos nos últimos 20 anos. Além disso, o levantamento aponta que as estruturas construídas nos anos 1960 e 1970 duravam aproximadamente 30 anos, e a estimativa para os projetos mais recentes é de obsolescência em menos de duas décadas. A cidade de Indianápolis ainda pagava pela construção do RCA Dome quando ele foi demolido, em 2008. Em Atlanta, o Georgia Dome, levantado com dinheiro público em 1992, foi demolido em 2017 para ser substituído pelo Mercedes-Benz Stadium.
Donos de times argumentam que as construções geram empregos, ainda que temporários, e novas atrações trazem dinheiro de turistas para as cidades. Críticos alegam que os benefícios são para poucos, alguns fãs de futebol privilegiados que podem pagar o alto valor pelos ingressos ou ter acesso aos camarotes, e que têm se proliferado no novo modelo de estádios.
Pode parecer um remédio amargo para as cidades, mas a tendência não dá sinais de desacelerar. O Buffalo Bills anunciou recentemente um acordo para uma nova arena que manterá o time no norte do estado de Nova York. O Chicago Bears negocia o terreno para levantar sua nova casa na área de Arlington Heights. E o time de Washington, recentemente rebatizado de Commanders, acerta os detalhes para fazer um estádio novo apenas 24 anos depois de ter inaugurado sua casa atual, o FedEx Field.
Trata-se de uma das maiores contradições no esporte de um país que celebra e incentiva a livre iniciativa e o capitalismo. As ligas funcionam como grandes monopólios e usam de ideias socialistas não só para dividir receitas e manter o equilíbrio, mas também para construir novos estádios e aumentar a arrecadação com grande ajuda dos cofres públicos.
Sergio Patrick é especializado em comunicação corporativa e escreve mensalmente na Máquina do Esporte