A 32ª edição das Dez Milhas Garoto foi disputada no último fim de semana. Sou corredor há 16 anos e tinha a prova na lista das mais desejadas, mas ainda não havia surgido uma oportunidade para estar presente. Em 2023, consegui ir a Vitória e Vila Velha, matei minha vontade e, de quebra, me encantei por tudo que o evento representa.
Organizado pela marca de chocolates Garoto desde 1989, o evento é muito mais do que uma corrida de rua. Ele serve como um cartão-postal das cidades que o recebem e é motivo de orgulho para a população capixaba. No fim de semana da prova, que movimenta R$ 4 milhões na Grande Vitória, é impossível olhar para o lado e não ver alguém com a tradicional camisa amarela com detalhes em vermelho.
Ah, mas tem muita prova por aí que serve como cartão-postal também. Sim, é verdade, e com números muito mais expressivos. Em agosto, divulgamos na Máquina do Esporte que a Maratona do Rio, maior festival de corridas de rua da América Latina, por exemplo, obteve um impacto econômico de R$ 137,2 milhões no estado do Rio de Janeiro em 2023.
Não estou aqui falando que a Maratona do Rio não é uma boa prova. Pelo contrário, é sensacional. Mas é diferente, muito diferente. Quando se fala em Vitória e Vila Velha, estamos falando das duas cidades mais conhecidas do Espírito Santo, mas que, juntas, não somam sequer 1 milhão de habitantes. Quando se faz um comparativo, o Produto Interno Bruto (PIB) do Espírito Santo era quase 5,5 vezes menor do que o do Rio de Janeiro (R$ 753,8 milhões contra R$ 138,4 milhões) em 2020, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. E a população da capital fluminense era, segundo o Censo, de pouco mais de 6,2 milhões de habitantes em 2022.
Os cariocas não respiram o evento como os capixabas o fazem. Para se ter uma ideia, é raro ver pessoas nas ruas torcendo pelos corredores ao longo de provas de running no Brasil, o que é muito comum lá fora. Em Vitória e Vila Velha, porém, cansei de agradecer os incentivos enquanto corria (e olha que a sensação térmica estava altíssima e seria muito mais fácil ficar dentro de casa, abraçado ao ar-condicionado). Que eu me lembre, apenas a também tradicional Tribuna 10K, em Santos (SP), leva tanta gente para as ruas, espalhadas por todo o trajeto, como as Dez Milhas Garoto.
No entanto, o mais impressionante, na minha opinião, é o fato da organização da prova ser de uma marca de chocolate. As Dez Milhas Garoto são um exemplo de que uma marca não relacionada ao esporte é capaz de criar, manter, melhorar e tornar tradicional uma prova de running, além de criar uma simbiose com a cidade (no caso, as cidades) que a recebeu de braços abertos um dia e que, já há bastante tempo, colhe os frutos de ter sido uma boa anfitriã.
A Garoto faz parte da paisagem de Vila Velha. A fábrica da marca é atração turística (ah, o sonho lúdico de conhecer uma fábrica de chocolates) da cidade e, é claro, de Vitória também, afinal, os dois municípios são praticamente grudados, separados apenas por três pontes. Aliás, mais do que isso: é a segunda atração mais visitada do Espírito Santo, perdendo apenas para o Convento da Penha, um dos santuários religiosos mais antigos do país e que também está localizado em Vila Velha.
Ao conversar com algumas pessoas das duas cidades, fica claro que muitas e muitas crianças de todo o estado, desde cedo, sonham em trabalhar na Garoto. As ruas próximas à fábrica contam com lojas de diversos segmentos que têm as cores amarela e vermelha pintadas em suas fachadas. Há um certo ciúme no ar se você decide falar bem de outra marca de chocolate.
Vila Velha e Vitória respiram Garoto. A Garoto é uma espécie de patrimônio capixaba.
Em 1989, quando a marca decidiu criar a prova para comemorar os 60 anos de atuação no Brasil (sempre sediada no Espírito Santo), o universo do running não era nem 5% do que é hoje. Mesmo assim, a marca quis se aliar ao esporte e, com um trabalho de divulgação, comunicação e marketing de alto nível, fez com que a prova crescesse a ponto de ter 13 mil atletas pelas ruas em 2023 apenas na prova principal.
Como o futebol tem pouca força, com nenhum time presente nas três principais divisões nacionais, as Dez Milhas Garoto são nada menos do que o maior evento esportivo do estado.
E, para atingir outros públicos, ainda se reinventou. Neste ano, ocorreu a 20ª edição da Corrida Garotada, com impressionantes 2.200 crianças e adolescentes de 6 a 17 anos. E também a 2ª edição da Cachorrida, com 600 tutores inscrevendo seus cachorros para participar.
Vale destacar, por fim, o percurso da prova principal. Com um total de 16km, ele é bem dividido entre as duas cidades (praticamente 8km para cada uma), com a largada em Vitória e a chegada em Vila Velha, em frente à fábrica.
Corre-se ao largo da Praia de Camburi e da Praia do Canto, em Vitória, e em frente à estonteante Praia da Costa, em Vila Velha. No meio, a cereja do bolo: a dificílima subida da Terceira Ponte é amenizada pelo belíssimo visual do mar e do Convento da Penha, que parece cuidar dos capixabas lá do alto.
A única questão a ser reconsiderada é o horário da largada. Houve quem saísse às 8h em um dia que prometia (e se cumpriu) ser o mais quente do ano em diversas regiões do país. Nesse horário, a maioria dos corredores deveria estar chegando, não partindo. Para se ter uma ideia, havia atletas cruzando o pórtico de chegada para lá de 11h, com uma sensação térmica já beirando os 35ºC.
Feita essa única crítica, é uma realidade a prova ter se tornado uma das mais importantes e desejadas do país. É, inclusive, um caso a ser estudado por quem deseja crescer nesse universo. Em 2023, as inscrições se esgotaram com meses de antecedência. E a tendência é que, em 2024, seja ainda “pior”. Eu, por exemplo, se tiver oportunidade, estarei por lá de novo.
A brincadeira óbvia de que se trata da corrida de rua mais doce do Brasil nunca havia feito tanto sentido.
Wagner Giannella é praticante de corrida de rua desde 2007 e editor-chefe da Máquina do Esporte