A cada quatro anos, em meio ao clima de Copa do Mundo, há alguns temas que sempre voltam à tona. É o caso, por exemplo, de curiosidades sobre edições anteriores, detalhes de gols históricos e discussões sobre a nacionalidade esportiva de certos jogadores.
Com efeito, não é incomum que se veja atletas representando países diferentes de suas origens. Na atual edição, pode-se já citar como exemplo o caso de Breel Embolo, que, apesar de ter nascido em Camarões, representa a seleção suíça e inclusive marcou um gol contra seu país de origem. Ressalte-se que foi a primeira vez que uma situação como essa ocorreu.
Além disso, houve a polêmica envolvendo Byron Castillo, que defendeu a seleção equatoriana ao longo das Eliminatórias para a Copa do Mundo, muito embora haja quem especule que tenha nascido na Colômbia.
Na Copa do Mundo de 2018, por sua vez, discutiu-se o papel dos imigrantes na formação da equipe francesa, que se sagrou campeã, tendo como maioria de seu elenco jogadores com origens diversas. E, em edições antigas, relembra-se a curiosa situação de atletas que disputaram Copas do Mundo por mais de um país, como Luís Monti (Argentina e Itália), Ferenc Puskás (Hungria e Espanha), José Altafini Mazzola (Brasil e Itália) e José Santamaría (Espanha e Uruguai).
Até como forma de evitar a repetição de situações como essa, o sistema do esporte organizado desenvolveu a dita nacionalidade esportiva. Tratando-se de instituto diverso da nacionalidade legal, definida por normas estatais, a nacionalidade esportiva se refere à possibilidade de um atleta representar determinada seleção estatal e é definida pelas regras internas de cada entidade de administração do desporto, como a Fifa.
Aponta-se como fundamentos básicos da nacionalidade esportiva a busca pela integridade e pelo equilíbrio das competições, bem como a valorização da identidade esportiva.
Em outras palavras, o sistema do esporte reconhece que as seleções nacionais podem contribuir para a união interna de um país, bem como para a sensação de que sua população se veja representada por jogadores que nasceram naquele determinado local. No entanto, para que isso não seja deturpado, houve o desenvolvimento das regras de nacionalidade esportiva.
É importante ressaltar que cada modalidade possui suas próprias regras sobre o tema, o que inclusive se relaciona com as peculiaridades de cada atividade esportiva e com o grau de seu desenvolvimento global. Como exemplo conhecido disso, costuma-se mencionar o caso do rúgbi, em que é possível, diferentemente do que ocorre na maioria das outras modalidades, que os atletas defendam a seleção de um país do qual não sejam legalmente nacionais.
Ainda convém apontar que as regras de nacionalidade esportiva se desenvolvem ao longo do tempo, a depender da evolução da modalidade e do contexto geopolítico. Tanto é assim que as normas aplicáveis ao futebol foram recentemente alteradas pela Fifa.
Há um tempo, a regra geral aplicável ao futebol é que, para atuar por determinada seleção nacional, o atleta precisa possuir a nacionalidade legal desse país. Além disso, é necessário que o jogador preencha algumas condições, que visam a garantir sua identidade com o local. Atualmente, são elas: ter nascido no país, ter pais nascidos no país, ter avós nascidos no país e/ou ter morado no local por, ao menos, cinco anos.
Para os casos em que o atleta possui mais de uma nacionalidade legal, cabe ao jogador escolher a seleção que representará. Naturalmente, a opção dependerá, também, de critérios desportivos e da análise das chances reais de convocação em cada equipe.
O curioso é que, até 2021, a regra era que essa escolha devia ser feita antes da primeira partida oficial disputada pelo jogador em qualquer seleção. Isto é, a partir do momento em que o atleta defendesse um país em um jogo oficial, não poderia alterar sua opção, de modo que, ainda que detivesse a nacionalidade legal de outro local, não poderia mais representá-lo.
Percebe-se, então, que, muitas vezes, essa escolha precisava ser feita quando o jogador ainda era muito jovem. Além disso, o atleta se baseava em critérios que podiam se alterar no decorrer de sua carreira.
Provavelmente em razão disso, em 2021, a Fifa flexibilizou, de certa forma, essa regra. Com efeito, atualmente o jogador pode alterar sua escolha uma vez, contanto que estejam preenchidos, em síntese, um dos seguintes critérios:
– O jogador tenha atuado por outra seleção em uma partida oficial, desde que não da categorial profissional, em momento que já detivesse a nacionalidade da outra localidade que pretende representar;
– O jogador tenha atuado por outra seleção em uma partida oficial, desde que não da categorial profissional, em momento que ainda não detivesse a nacionalidade da outra localidade que pretende representar, mas em que possuísse menos de 21 anos;
– O jogador tenha atuado por outra seleção em até três partidas oficiais da categoria profissional, desde que não em Copa do Mundo ou em competição de confederação, em momento que já detivesse a nacionalidade da outra localidade que pretende representar e em que possuísse menos de 21 anos, bem como que já tenham se passado três anos de tal atuação;
– A seleção em questão tenha sida admitida pela Fifa após a atuação do jogador por outra seleção, desde que não tenha continuado a representar o mesmo local após a admissão do país que quer defender pela Fifa; e
– O jogador tenha perdido, por questões contrárias à sua vontade e decorrente de autoridade estatal, a nacionalidade legal da seleção que representou anteriormente e possua a nacionalidade legal do país que pretende representar.
Em tais casos, o jogador deve solicitar a alteração de sua nacionalidade esportiva para o Tribunal do Futebol, cuja atuação foi analisada anteriormente. Além disso, é possível ao atleta que altere sua nacionalidade esportiva, mas, se não vier a atuar, em partida oficial, pela sua nova seleção, pode solicitar seu retorno à nacionalidade anterior.
A referida alteração nas regras aplicáveis ao futebol parece já ter surtido efeitos. Afinal, muito se discutiu acerca da seleção de Gana, que disputa a Copa do Mundo com um elenco significativamente diverso do que se classificou para a competição, valendo-se, em grande medida, de atletas que possuem dupla nacionalidade.
É curioso notar ainda que a Fifa passou a regulamentar a questão dos apátridas, isto é, das pessoas que não possuem nacionalidade legal de nenhum país. Em tais casos, o jogador em questão pode representar um local em que habite há mais de cinco anos, contanto que possa provar que não tenha se mudado para lá apenas para atuar em sua seleção.
Novamente, percebe-se a relação do tema com fatores geopolíticos. Inclusive, sabe-se que o tema foi muito discutido, por exemplo, no contexto de desmembramento da Iugoslávia e da União Soviética.
Em resumo, a nacionalidade esportiva é um tema em voga a cada Copa do Mundo e está em constante desenvolvimento, a depender das peculiaridades de cada modalidade do esporte e do contexto geopolítico do mundo.
Alice Laurindo é graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em que cursa atualmente mestrado na área de processo civil, estudando as intersecções do tema com direito desportivo; atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados; é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; membra da IB|A Académie du Sport; e escreve mensalmente na Máquina do Esporte sobre direito desportivo