A prática profissional (ou não) do esporte: Um exemplo do conflito entre a Lei Pelé e a Lei Geral do Esporte

Bia Haddad Maia é um exemplo de atleta que pode ser considerada profissional ou não, de acordo com a lei que se leva em consideração - Reprodução / Instagram (@biahaddadmaia)

Atribuir a um atleta a qualificação de “profissional” parece uma tarefa simples à primeira vista. O senso comum aponta para a conexão do profissionalismo com a prática esportiva de alto nível, além da associação com a dedicação exclusiva (ou quase exclusiva) ao esporte como fonte de remuneração. Sem dúvida, são aspectos lógicos que merecem ser considerados, mas a verdade é que a legislação brasileira nem sempre adotou essas premissas, e ainda hoje contempla desafios sobre o tema.

A identificação das diversas formas de prática do esporte não é recente. Desde sua publicação, em 1998, a Lei Pelé (Lei nº 9.615/98) segue a rota adotada ainda em 1993 pela Lei Zico (Lei nº 8.672/93, que foi revogada pela Lei Pelé) e reconhece a existência de três manifestações do esporte: educacional, de participação e de rendimento.

A primeira diz respeito à prática do esporte como iniciativa educacional, “com a finalidade de alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer”; a segunda refere-se à prática voluntária do esporte, associada, por exemplo, à “integração dos praticantes na plenitude da vida social” e à “promoção da saúde”; a última, enfim, corresponde à prática esportiva competitiva em seu nível máximo, “com a finalidade de obter resultados”. Já em 2015, incluiu-se na Lei Pelé uma quarta espécie de manifestação esportiva, a de formação, associada à “aquisição inicial dos conhecimentos desportivos que garantam competência técnica na intervenção desportiva”.

Não há dúvida de que a prática profissional se insere no contexto do esporte de rendimento. Para além do senso comum, a Lei Pelé confirma essa percepção ao dispor que o esporte de rendimento pode ser praticado de dois modos: profissional ou não profissional. E esse é o ponto de partida da celeuma existente atualmente na legislação.

Ela teve origem em 2023, quando entrou em vigor a Lei Geral do Esporte (Lei nº 14.597/2023). Após anos de tramitação no Congresso Nacional, pretendia-se que a Lei Geral do Esporte sistematizasse a legislação federal sobre o esporte em um único diploma legal, revogando as leis que então regiam o tema no nosso país. A Lei Pelé, até então o principal normativo sobre esporte, seria também revogada. Porém, a Presidência da República vetou mais de uma centena de dispositivos da nova lei, inclusive aquele que revogaria a Lei Pelé.

Em função disso, hoje coexistem duas leis visando à regulação do esporte no Brasil. E, em meio aos diversos temas tratados em ambas, encontra-se a definição sobre prática profissional.

De acordo com a Lei Pelé, considera-se profissional a prática esportiva quando caracterizada “pela remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva”. Portanto, a essência do profissionalismo residiria na natureza da relação jurídica por meio da qual o atleta recebe sua remuneração (isto é, por meio de uma relação de trabalho), sendo que tal relação seria necessariamente com uma entidade de prática esportiva (isto é, um clube).

Diante dessa definição, atletas absolutamente renomados e que evidentemente fizeram da prática esportiva seu trabalho não eram considerados profissionais. Como exemplo disso, pode ser citado Gustavo “Guga” Kuerten, uma vez que, como tenista participante do circuito da Associação dos Tenistas Profissionais (ATP), ele competia em nome próprio e muito provavelmente não mantinha qualquer relação de trabalho estabelecida com um clube. Seus proventos eram provavelmente obtidos majoritariamente por meio de patrocínios e premiações, o que, à luz da Lei Pelé, é (ou era) próprio da prática não profissional.

Por outro lado, a Lei Geral do Esporte define como atleta profissional “o praticante de esporte de alto nível que se dedica à atividade esportiva de forma remunerada e permanente e que tem nessa atividade sua principal fonte de renda por meio do trabalho, independentemente da forma como recebe sua remuneração”. Logo, a essência da norma se aproxima do senso comum sobre o que representa o profissionalismo no esporte, ou seja, a prática esportiva em alto nível, que exige dedicação integral (ou próxima disso) e que se constitui como principal fonte de renda do atleta, independentemente da natureza jurídica da relação por meio da qual essa renda seja auferida.

Nesse contexto da Lei Geral do Esporte, a também tenista Beatriz “Bia” Haddad Maia, como participante do circuito da Associação de Tênis Feminino (WTA), é considerada uma atleta profissional, pois pratica esporte em altíssimo nível, com intensa dedicação a essa prática, e tem nela sua principal fonte de renda por meio de trabalho, uma vez que daí decorrem os patrocínios e as premiações a que faz jus. Ocorre que, se aplicarmos à mesma tenista o conceito da Lei Pelé, a conclusão será diversa: uma atleta não profissional.

As regras de interpretação existentes no direito oferecem alternativas para solucionar o problema. Técnicas e conceitos próprios do juridiquês, tais como “revogação tácita” ou “conflito de normas”, apontam caminhos que permitem concluir pela prevalência da definição contida na Lei Geral do Esporte, em se tratando da mais recente. Contudo, é certo que a ausência de revogação expressa da Lei Pelé abre margem a interpretações diversas e, consequentemente, a uma insegurança jurídica.

Vale dizer que essa questão não é uma mera discussão em tese. A identificação sobre a condição de um atleta como profissional ou não profissional repercute na aplicação de diversas outras normas, tais como o Código Brasileiro de Justiça Desportiva e a Lei de Incentivo ao Esporte. Há, portanto, efeitos práticos em jogo, e a insegurança jurídica é naturalmente nociva para o ambiente esportivo.

Enfim, o problema acerca da definição de prática profissional do esporte é um exemplo dentre tantos criados pelas centenas de vetos impostos à Lei Geral do Esporte e pela consequente coexistência de dois diplomas legais (a Lei Pelé e a Lei Geral do Esporte) que visam a regular as mesmas relações jurídicas. Diante disso, espera-se que não tarde para que o Congresso Nacional aprecie todos os vetos que desconfiguraram a Lei Geral do Esporte e restabeleça a sistematização pretendida com a edição desse diploma legal, inclusive com a revogação da Lei Pelé.

Pedro Mendonça é advogado especializado na área esportiva desde 2010, com vasta experiência na assessoria a diversas entidades esportivas, como comitês, confederações e clubes, além de atletas, e escreve mensalmente na Máquina do Esporte

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