Os esportes são reflexos da sociedade. Não importa se estamos falando de um estádio lotado para um clássico de futebol ou de uma reunião para uma partida de bocha na praça do seu bairro. Não importa qual seja a cidade ou país ou a liga, o que ocorre nas ruas no dia a dia será representado no esporte. Não há exceção.
“Pois no meu time não podemos aceitar uma pessoa acusada e condenada por crimes sexuais”. OK, na teoria é lindo. Na prática, o domingo do Dia das Mães ficou marcado pelo clássico Corinthians x São Paulo, na Neo Química Arena, em que o juiz interrompeu o jogo por alguns minutos até que a torcida do time da casa, que recentemente tanto se posicionou contra violência, parasse de entoar cânticos homofóbicos contra o time rival.
Uma torcida que se posiciona como antirracista e que está em processo de compreender que violência sexual não pode ter espaço no seu clube (e na sociedade), ainda autoriza e fortalece violência homofóbica. Reflexo da sociedade. O Brasil é homofóbico. O Brasil é agressivo contra homossexuais. Sim, de fato o Brasil é racista e violento contra mulheres, mas ao menos as discussões que cercam o tema têm crescido para que esses crimes absurdos sejam denunciados e punidos.
O futebol espanhol é marcado pelo racismo. Racismo que vem das arquibancadas, das ruas, dos times, e da LaLiga. Não é recente. Não é uma situação obscura. Está tudo 100% à vista de todos, das câmeras e dos holofotes da mídia.
A violência é televisionada, e o silêncio é ensurdecedor. Não o silêncio de modo literal, mas a reação punitiva e a mudança de comportamento visando a um crescimento esportivo e da sociedade.
Teoricamente, toda ação gera uma reação, mas o futebol espanhol vem para romper até mesmo com as Leis de Newton. Nós que gostamos do jogo bem jogado, da resenha com os amigos e da competitividade que o esporte nos privilegia, não podemos mais compactuar com os absurdos ocorridos dentro e fora de campo.
Em campo pelo Barcelona, Daniel Alves foi vítima de xenofobia e racismo inúmeras vezes. Em 2014, ele ousou comer uma das bananas que eram tradicionalmente atiradas em campo.
Em 2005, atuando pelo Real Madrid, Ronaldo Fenômeno sofreu racismo e reagiu, atirando uma garrafa de água contra os torcedores que proferiram palavras contra ele e sua mãe. Em nenhum dos casos houve punições.
Em janeiro, um boneco utilizando a camisa de Vinícius Júnior foi pendurado em um viaduto por ultras, próximo ao estádio do Atlético de Madrid, antes do clássico madrilenho. O boneco simulava um enforcamento e era acompanhado por uma faixa com os dizeres “Madri odeia o Real”. Não houve punição.
Posso ficar aqui citando atletas e mais atletas. Porque é assim, um silêncio ensurdecedor.
No último domingo (21), não foi diferente em Valência. A vítima, como já se tornou tradicional por lá, foi Vini Jr., atacante do Real Madrid. Desde as horas que antecederam o jogo, a violência já existia. Sim, porque os ataques começam sempre antes. Os absurdos sempre são filmados, sem vergonha alguma. Além dos gritos de “mono” (macaco), atiraram objetos em campo. E quando Vinícius apontou para um dito torcedor, identificando-o como um de seus agressores, o árbitro do jogo se recusou a acompanhar o atleta até a beira do gramado. O delegado da partida também não agiu, nem mesmo reagiu a um grandioso espetáculo do show de horrores.
Depois, em meio a outra confusão do jogo, pasmem, Vinícius recebeu um mata-leão de um jogador adversário. Ao se esquivar e retrucar a agressão que estava sofrendo, foi expulso de campo. Novamente, tudo televisionado. Ninguém saiu de campo preso. O Real Madrid não se recusou a jogar. O juiz novamente não tomou as devidas atitudes. O responsável pelo VAR ignorou a agressão sofrida pelo atacante. Nenhum racista perdeu nada. Quem perdeu foi Vinícius e o futebol.
Ao apontar a conivência da competição, Vini Jr. acabou atacado até pelo presidente da LaLiga em sua conta pessoal no Twitter. Não vieram as desculpas, não veio um apontamento construtivo sobre as cenas que acompanhamos perplexos pela televisão. Novamente, foi um ataque direcionado ao jogador que passou mais um fim de semana sendo violentado em várias esferas.
O jornal Marca, um dos principais da Espanha, postou em seu Instagram uma publicação com fotos do jogo em Valência. Na legenda, escreveu que Vinícius foi “supostamente vítima de racismo”. São nove fotos e nenhuma apresenta o mata-leão que o atacante brasileiro recebeu antes de revidar a agressão, ou o rosto daqueles que proferiram insultos por mais de 90 minutos. Outros conteúdos foram criados, mas não tiveram o devido destaque e o devido tom de repúdio a mais essa violência. Na segunda-feira (22), veio a “mea culpa”, com um editorial falando de racismo. Mas será que é de fato algo que está intrínseco na equipe do jornal ou que foi criado para o público por conta da repercussão?
De volta ao domingo (21). A LaLiga publicou em seu Instagram um conteúdo com uma foto dos jogadores do Valencia se abraçando. A legenda: “beautiful” (lindo ou maravilhoso, em tradução livre). Além de outros conteúdos relacionados ao jogo. Nada sobre a violência. Nada sobre um comportamento lamentável dentro e fora de campo.
Na segunda-feira (22), fizeram um conteúdo medíocre, afirmando que apenas uma parcela dos torcedores são racistas, acompanhado de um QRCode para realizar denúncias. Repito: posicionamento medíocre. Como dizemos aqui no Brasil, é “tapar o sol com a peneira”. Em seu editorial, a Máquina do Esporte enfatizou sobre o caso: é preciso expulsar o racismo, ou a liga se autodestruirá.
Perguntas vêm à mente com todo esse cenário absurdo. Algumas competições proibiram transmissões de brigas físicas, sejam elas entre torcedores ou até mesmo entre atletas e comissões técnicas. Algumas competições punem os clubes com a retirada de pontuação ou até mesmo com a realização de jogos com o estádio fechado. Outras realizam ações educativas. A LaLiga, por sua vez, permite diversas violências e só se mostra incomodada de fato quando é acusada de ser permissiva.
Por que os patrocinadores não inserem cláusulas nos contratos para estes casos? É importante que o dinheiro que movimenta esses negócios milionários também seja utilizado para auxiliar na regulamentação e na mudança de comportamento da sociedade. Se o futebol, um dos maiores esportes do mundo, permite o racismo, e sua empresa patrocinadora não exige uma mudança, trata-se de uma marca conivente, e conivência com violência também é violência.
A mídia que é conivente com a violência também é influenciadora da mesma violência. Se a briga física entre torcidas organizadas não é mais transmitida por essa lógica da influência e de não supervalorizar os criminosos, por que os gritos homofóbicos e racistas ainda possuem os áudios compartilhados para milhões de pessoas? Como consumidor, é esse o entretenimento que se deseja compartilhar com sua família? E como detentor dos direitos de transmissão, é esse o entretenimento que foi pago para a cobertura de uma competição ou mesmo de um clube?
Em relação aos responsáveis pela segurança nos estádios, o que mais precisa acontecer para que racistas e homofóbicos saiam algemados e sejam acusados formalmente para responder por seus crimes? A regra da Fifa fala em encerrar a partida em casos extremos, mas o que mais é necessário ocorrer para que as ações coletivas de torcedores e até de atletas recebam de fato punições exemplares?
As mídias que repercutem o caso não estampam mais os jornais com os rostos de quem pratica a violência? A vergonha e as acusações são situações menores em relação a tudo que se é cometido? É OK um homem negro que está cumprindo com seu contrato de trabalho ser violentado fisicamente por outro atleta, e aquele que o agarrou e o agrediu fisicamente não ser pressionado para ao menos um pedido de desculpas?
É este o esporte moderno, com 1.001 tecnologias, GPS, inteligência artificial, os melhores profissionais do mercado, mas que se nega a criminalizar torcidas, comissões técnicas, atletas e executivos que não entenderam ainda que é um absurdo tudo que está ocorrendo no futebol, e por que não citar também no vôlei e no basquete?
Sim, temos diversas entidades esportivas, clubes, jogadores e desta vez até mesmo ministérios e o presidente de um país se envolvendo. O governo brasileiro agiu desta vez, mas por que não o fez no caso da simulação do enforcamento de Vini Jr. no início do ano? Não sabemos.
Na manhã de terça-feira (23), acordamos com a informação de que quatro acusados de envolvimento com o ato criminoso do boneco enforcado, ocorrido em janeiro, foram presos. Milagrosamente, quatro meses após o ato. Coincidentemente, menos de 48 horas após o ocorrido em Valência.
Talvez dessa vez não seja um silêncio completo e absoluto. Talvez dessa vez o caso seja tratado com um pouco mais de seriedade. Ao menos no Brasil o assunto ainda reverbera nas redes sociais e programas de TV, mas será que esse engajamento vai perdurar? Ou é somente até o próximo jogo de futebol, seja da competição que for? Espero que não. Esperamos que não.
Precisamos parar de apenas refletir dentro de campo o que ocorre de negativo na sociedade. Precisamos promover mudanças também de dentro para fora. Precisamos punir criminosos. Precisamos que o esporte, além de sua ação transformadora, não seja mais palco para o que há de pior na sociedade.
O procurador-geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), Ronaldo Piacente, confirmou que deve denunciar o Corinthians pela homofobia do dia 14 de maio, no clássico diante do São Paulo. Será suficiente? O profissional do VAR no jogo do Real Madrid será despedido. Será suficiente? Santander, Puma e Socios.com soltaram notas sobre o ocorrido no final de semana. Será suficiente?
De fato, não sabemos. Por enquanto, são apenas ruídos nesse silêncio ensurdecedor que tanto perdura nos gramados espalhados por aí.
Mariana Souza é especialista em marketing digital e analista de marketing na Máquina do Esporte