Silvio Lancellotti, que morreu nesta terça-feira (13) aos 78 anos, teve uma vida absurdamente rica em experiências, sendo um personagem importante do nosso jornalismo desde os anos 1960. Arquiteto, foi também esportista, jornalista, comentarista de TV, chef de cozinha e escritor, entre outras habilidades.
Quase todo jovem que se apaixonou por esporte nos anos 1980 não se esquece das transmissões do Campeonato Italiano nas manhãs de domingo, na Band, com os comentários de Silvio Lancellotti sobre os inesquecíveis times do Napoli, de Careca e Maradona, ou do Milan, de Gullit e Van Basten.
Na época eu não sabia, mas ele já tinha uma carreira jornalística marcante. Foi um dos fundadores da Veja. Anos depois, tornou-se correspondente da revista nos Estados Unidos, no período em que estudou jornalismo na Universidade de Stanford. Passou também por Isto É e Vogue, entre outras publicações.
Nos anos 1990, eu lia o Lancellotti colunista de esportes da Folha de S.Paulo. Infelizmente, quando fui trabalhar no jornal, em 2000, ele já havia saído. Na TV, além da Band, também passou por Record, Manchete e ESPN, de onde se despediu em 2012 para virar blogueiro do R7, portal da Record que fora lançado anos antes.
Minha trajetória cruzou com ele pela primeira vez em 2016. Estava lançando dois livros sobre Olimpíada, e ele me mandou mensagem querendo lê-los para fazer resenha. Fui até a casa dele entregar as obras (por acaso, não morava longe de mim). Foi quando o vi pela primeira vez. Semanas depois, ele publicou, com muita generosidade, um texto intitulado “Dois ótimos livros sobre os Jogos Olímpicos”.
Por causa dos acasos da vida, um ano depois virei editor de Esportes do R7 e, como ele gostava de me chamar, seu “chefe”. Falava quase todos os dias com o Silvio, a quem passei a chamar, com algum grau de intimidade, de Lança.
Dois anos depois, quando deixei o R7, ele me ligou e foi novamente tão generoso nas palavras que me emocionou. Mesmo fora do portal, visitava o Lança periodicamente para bater papo, me impressionar com seus conhecimentos enciclopédicos sobre quase todos os assuntos, pedir conselhos e discutir os rumos do futebol e dos esportes olímpicos no Brasil. A pandemia nos afastou da convivência presencial, mas nos falávamos toda semana pelo WhatsApp.
Dias atrás, ele me contou que usava Nederlands em vez de Holanda em seus textos por uma razão simples (que obviamente eu não sabia e aprendi com ele):
“Na verdade, nunca se chamou Holanda. Foi sempre Nederlands, ou Países Baixos. Só que lá existem duas províncias, a Holanda do Norte e a Holanda do Sul. E uma decisão parlamentar mandou as embaixadas recomendarem que, em seus documentos oficiais, não mais se usasse Holanda. Caso do Brasil. Que, porém, não respeita a solicitação”
Silvio Lancellotti
Gostava também de me mandar os textos que escrevia sobre suas memórias nas coberturas que fez das Copas do Mundo. Deveriam ser reunidos em um livro, tal a riqueza de detalhes dos bastidores que ele viveu nesses Mundiais. Cheguei a falar isso para o Lança. Essa, no entanto, ele ficou me devendo.
Em maio, mandou-me mensagem feliz com o lançamento do seu novo livro, “Os assassinos do abecedário”. Um policial talvez com alguma inspiração em “Os crimes ABC”, de Agatha Christie? Ainda não consegui ler. Estava atrás de um exemplar autografado, que infelizmente a correria do dia a dia não me proporcionou.
Outra obra autografada, porém, guardo com carinho na mesa de trabalho. Ainda fica junto ao notebook por causa de tantas vezes que usei o “Olimpíada 100 anos: história completa dos Jogos” para tirar dúvidas históricas durante a cobertura da última Olimpíada, na minha segunda passagem pela Folha de S.Paulo.
Há histórias maravilhosas, lembradas pelos amigos, de que foi o Lança quem sugeriu o picles no Big Mac. Ou que teve a ideia de misturar creme de papaia com licor de cassis e criar uma sobremesa hoje tipicamente brasileira. Ou ainda que foi o autor do primeiro gol da história do Mineirão, em uma partida entre universitários disputada horas antes da inauguração oficial do estádio.
Para mim, certa vez, ele contou que fez parte dos treinamentos da seleção brasileira de polo aquático que disputaria o Pan-Americano de São Paulo, em 1963. Não lembro o motivo que o tirou da competição, se por lesão ou corte de última hora. O time brasileiro conquistou o único título da história do país na modalidade em Pans. E o Lança dizia que os colegas de seleção conseguiram uma medalha de ouro extra para presenteá-lo (jamais vi a relíquia, mas acredito nele).
Lança trabalhou incansavelmente até o mês passado, com textos em seu blog no R7. Será uma tremenda sacanagem, para mim, não saber o que ele iria achar da Copa do Mundo do Catar. Foi inspirador para mais de uma geração de jornalistas, entre os quais me incluo. Que possa descansar em paz em outros planos. Foi, além de tudo, um trabalhador incansável por aqui.
Adalberto Leister Filho é diretor de conteúdo da Máquina do Esporte