Ao longo dos últimos meses, a Fifa tem divulgado uma série de documentos interessantes do ponto de vista jurídico. É o caso, por exemplo, do Guia para Licenciamento no Âmbito do Futebol Feminino, abordado na última coluna. No entanto, nem todos têm recebido a atenção necessária. Assim, esta coluna tecerá algumas considerações a respeito do relatório do Tribunal do Futebol, publicado recentemente.
Nos últimos dias, a Fifa lançou um relatório interessante acerca da atuação dos órgãos judicantes da entidade no período entre 1º de julho de 2021 e 30 de junho de 2022. Em especial, o documento trata da Câmara de Resolução de Disputas e da Câmara do Status dos Jogadores. Aponte-se que essas câmaras possuem competência para analisar litígios entre clubes, associações, jogadores e/ou técnicos que possuam dimensão internacional, isto é, que envolvam partes filiadas a associações nacionais diferentes.
Além disso, é significativo mencionar que esses órgãos passaram por alterações importantes no final do ano passado. Com efeito, em outubro de 2021, foi implementado o Tribunal do Futebol, que contará, então, com três frentes: a Câmara de Resolução de Disputas, a Câmara do Status dos Jogadores e a Câmara de Agentes. Esta última, destaque-se, ainda não está ativa, aguardando-se a aprovação do novo regulamento de intermediários da Fifa.
Assim, em um futuro próximo, a entidade deverá adotar modificações significativas na regulação da atividade de intermediação, bem como voltará a ter competência para analisar conflitos internacionais envolvendo agentes/intermediários.
Com relação ao relatório do Tribunal do Futebol, um primeiro dado interessante para destacar é o número de casos. Afinal, no período supramencionado (de 1º de julho de 2021 a 30 de junho de 2022), a Câmara de Resolução de Disputas e a Câmara do Status dos Jogadores receberam 14.540 novas demandas. A maior parte desses casos, porém, voltou-se à autorização de registro de menores, que somaram 9.018 aplicações.
Nesse contexto, cumpre ressaltar que, em regra, a Fifa não permite transferências internacionais de atletas menores de idade. No entanto, admitem-se exceções, tais como:
- O fato de os pais do atleta se mudarem para outro país por questões não relacionadas ao futebol;
- O fato de o atleta possuir entre 16 e 18 anos e a transferência ocorrer dentro do território da União Europeia ou do Espaço Econômico Europeu;
- O fato de o atleta e a agremiação estarem situados a menos de 50km da fronteira entre dois países e o jogador continuar morando em seu país natal;
- O fato de o atleta já estar no país há pelo menos cinco anos;
- O fato de o atleta ter deixado seu país por questões humanitárias; e
- O fato de o atleta ser estudante e ter se transferido a outro país por questões acadêmicas, de modo a participar de intercâmbio.
Em tais situações, é possível o registro do jogador estrangeiro menor de idade, mas deve haver autorização prévia do Tribunal do Futebol. Curioso notar, então, como essas hipóteses têm se tornado mais frequentes. Como possíveis causas para isso, o relatório sugere o levantamento de restrições causadas pela pandemia de Covid-19 e a invasão da Ucrânia.
Segundo o texto, 44,1% dos casos envolvendo autorização de registro de menores se fundaram na justificativa de que os pais teriam se mudado para outro país por questões não relacionadas ao futebol. Na sequência, as duas causas mais comuns foram, respectivamente, o fato de o atleta já estar no novo país há pelo menos cinco anos ou ter se mudado por questões humanitárias.
Além disso, de acordo com as informações divulgadas, os países em que mais houve registro de jogadores menores de idade foram, respectivamente, Portugal, Espanha, Estados Unidos e Catar.
Também houve um aumento de 17,4% das demandas envolvendo questões trabalhistas. Em geral, porém, houve uma diminuição dos demais casos, o que pode se explicar pelo fato de que, entre 2020 e 2021, havia ocorrido um aumento significativo.
Também chama atenção o tempo médio para julgamento dos casos. As questões contratuais, que, como se sabe, tendem a ser mais complexas, foram julgadas, em média, em menos de quatro meses. Já casos registrais, como as autorizações de registro de menores, foram resolvidos em menos de uma semana.
Outro ponto interessante do relatório diz respeito aos casos em que há cobrança de mecanismo de solidariedade ou de compensação por formação que, ressalte-se, visam a recompensar financeiramente as agremiações que tenham contribuído para a formação dos atletas.
Com efeito, de acordo com as regras da Fifa, o mecanismo de solidariedade equivale a uma porcentagem devida, no caso de transferência internacional de jogador, aos clubes que tenham formado o atleta. A compensação por formação, por sua vez, corresponde a uma indenização devida ao clube formador quando o jogador é registrado pela primeira vez como profissional e para cada transferência dele, até que complete 23 anos.
Apenas para evitar dúvidas, ressalte-se que, no âmbito nacional, também há mecanismo de solidariedade e compensação por formação, tratando-se, porém, de regras diversas, disciplinadas pela Lei n. 9.615/98 (Lei Pelé).
Segundo as informações divulgadas pelo relatório, no período analisado, foram submetidas 1.976 novas demandas referentes à cobrança internacional de mecanismo de solidariedade e de compensação por formação. Além disso, foram julgados 2.049 casos a respeito do tema, levando-se, em média, 7,6 semanas para a resolução de tais processos.
Curioso notar que, de acordo com o relatório, 54,3% dos clubes demandados são oriundos da Uefa e 44,6% dos clubes demandantes vêm da Conmebol. Percebe-se, portanto, como o mecanismo de solidariedade e a compensação por formação são particularmente relevantes para os clubes sul-americanos, que frequentemente formam jogadores que, depois, são transferidos para o mercado europeu.
Por fim, um último dado que pode ser destacado diz respeito às mudanças de associação. Com efeito, em regra, atletas que já tenham defendido uma seleção nacional em jogo oficial não podem passar a defender um novo país. No entanto, alterações recentes aos regulamentos da Fifa implementaram exceções, que, porém, dependem de autorização do Tribunal do Futebol. De acordo com o relatório, o país que mais solicitou tais autorizações foi o Marrocos, o que pode significar alterações para sua equipe oficial.
Constata-se, pois, que o relatório do Tribunal do Futebol revela dados interessantes sobre a atuação da Câmara de Resolução de Disputas e da Câmara do Status dos Jogadores, tratando-se de um documento que se adequa à transparência almejada para tais órgãos e que deve ser analisado com calma. Por fim, cabe a nós aguardar a implementação da Câmara de Agentes e das consequentes alterações no mercado internacional de intermediação.
Alice Laurindo é graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em que cursa atualmente mestrado na área de processo civil, estudando as intersecções do tema com direito desportivo; atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados; é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; membra da IB|A Académie du Sport; e escreve mensalmente na Máquina do Esporte sobre direito desportivo