Quem acompanha a Fórmula 1 reconhece: de tempos em tempos, a principal categoria do automobilismo mundial apresenta polêmicas que dizem respeito à aplicação das regras da competição. Por exemplo, em um passado não tão distante, houve enormes controvérsias quanto à regularidade (i) do motor da Ferrari, (ii) do carro da então denominada Racing Point (atualmente, Aston Martin) que “copiava” o design da Mercedes e (iii) do procedimento de safety car na última e decisiva etapa do campeonato em 2021.
Em 2022, uma competição mais tranquila, de enorme domínio da Red Bull, apontava para uma temporada sem polêmicas sobre aplicação dos regulamentos, certo? Ledo engano.
O Grande Prêmio do Japão marcou a consagração de Max Verstappen como bicampeão mundial. Mas nem o próprio piloto tinha certeza disso ao fim da prova, pois havia controvérsias acerca da pontuação que seria distribuída após a corrida.
O cerne da questão era a atipicidade da prova disputada em Suzuka: iniciada sob chuva e suspensa com bandeira vermelha logo em seguida, a corrida veio a ser retomada somente horas depois. Ocorre que o Regulamento Desportivo da competição prevê, em seu artigo 5.4(b), que a duração máxima da prova, incluindo-se aí o período em que ela esteja suspensa, é de três horas. Em função disso, quando a direção de prova entendeu que a pista reunia condições para a retomada da corrida, já não havia mais tempo hábil para que se completasse a quantidade de voltas inicialmente programada, e o fim da corrida foi marcado por contagem regressiva até que se completassem as três horas desde seu início.
Nesse contexto se insere a polêmica, que teve origem na aplicação do artigo 6.5 do Regulamento Desportivo. Segundo essa norma, se uma prova é suspensa em conformidade com o artigo 57 (que trata da bandeira vermelha) e não pode ser retomada, a pontuação é distribuída da seguinte forma:
1) se o líder completar menos de duas voltas, não há distribuição de pontos;
2) se o líder completar duas voltas ou mais, mas menos que 25% da distância programada para a corrida, a pontuação se dá conforme coluna 1 da tabela abaixo;
3) se o líder completar de 25% a 50% da distância programada para a corrida, a pontuação se dá conforme coluna 2 da tabela abaixo;
4) se o líder completar de 50% a 75% da distância programada para a corrida, a pontuação se dá conforme coluna 3 da tabela abaixo;
5) se o líder completar mais que 75% da distância programada para a corrida, a pontuação é atribuída conforme a regra geral do artigo 6.4.
O vencedor Max Verstappen completou uma quantidade de voltas superior a 50% e inferior a 75% daquelas originalmente programadas para o evento, o que levou muitos a entender que os pontos seriam distribuídos conforme a coluna 3 da tabela acima. Como nesse critério há uma menor diferença de pontos entre o primeiro colocado e os demais, se ele fosse aplicável, Verstappen ainda não teria garantido matematicamente o título.
Mas, a bem da verdade, a eventual controvérsia não resiste à leitura mais atenta da norma: ela se aplica a provas que sejam suspensas e não possam ser retomadas (no original em inglês: “If a race is suspended in accordance with Article 57, and cannot be resumed”). Portanto, a distribuição de pontos somente deveria observar o artigo 6.5 do Regulamento Desportivo se a corrida não tivesse sido retomada após a sua suspensão. Não tendo sido esse o caso do Grande Prêmio do Japão, a atribuição dos pontos observou, a nosso ver corretamente, a regra geral contida no artigo 6.4 do Regulamento Desportivo: 25 pontos para o primeiro colocado, 18 para o segundo, 15 para o terceiro, e demais pontuações regularmente atribuídas até o décimo colocado.
É interessante notar que, em declarações após a corrida, chefes de equipe que supostamente participaram do desenvolvimento da regra contida no artigo 6.5, que teve origem após o GP da Bélgica em 2021, “disputado” por apenas duas voltas e atrás do safety car, manifestaram surpresa com o resultado e alegaram haver uma “brecha” no regulamento. Em suma, eles externaram que o objetivo da norma era garantir que os pontos não fossem distribuídos integralmente quando pelo menos 75% da distância prevista para a prova não fosse disputada.
No entanto, como já acima exposto, efetivamente não é esse o teor do artigo 6.5, que é bastante claro ao condicionar sua aplicação ao fato de a prova não ser retomada. Portanto, aparentemente, houve um descompasso entre o que os participantes pretendiam e o que o regulamento consolidou como norma.
Esse fato ilustra o quão fundamental é observar a melhor técnica jurídica no momento da elaboração de um regulamento esportivo. A criação de normas demanda um processo cuidadoso, com o objetivo de estabelecer um comando claro, objetivo e, sobretudo, que atenda à finalidade pretendida quando de sua concepção – e não é diferente em relação aos regulamentos elaborados pelas entidades esportivas. Eis, portanto, mais uma importante faceta da aplicação do direito no esporte.
Enfim, felizmente, a discussão sobre a distribuição de pontos no Grande Prêmio do Japão não teve maior relevância devido à folga com que Max Verstappen liderava a competição, com o bicampeonato sendo questão de tempo. Contudo, se esse episódio houvesse ocorrido nas etapas finais do campeonato de 2021, em que o título foi decidido por margem mínima de pontos, provavelmente as discussões sobre a interpretação do artigo 6.5 teriam sido bem mais acaloradas.
Pedro Mendonça é advogado especializado na área esportiva desde 2010, com vasta experiência na assessoria a diversas entidades esportivas, como comitês, confederações e clubes, além de atletas, e escreve bimestralmente na Máquina do Esporte