A tecnologia blockchain tem diversas aplicações que vão muito além dos colecionáveis digitais. Na minha última coluna por aqui, escrevi sobre venda de ingressos e como a transformação destes tíquetes em tokens pode eliminar a falsificação e controlar a ação dos cambistas. Hoje, falarei sobre outras aplicações com bastante potencial: autenticação de peças esportivas e produtos “figitais”.
Autenticação de peças esportivas
Antes de entrar no assunto, vale relembrarmos que uma blockchain é uma rede pública e imutável, ou seja, todos os registros feitos nesta rede são permanentes, além de serem transparentes, verificáveis por qualquer pessoa. Por conta disso, a tecnologia tem como uma de suas principais funcionalidades a capacidade de autenticar transações. Logo, vem sendo aplicada, por exemplo, na gestão de cadeias de suprimentos e no registro de contratos e outros documentos no mercado imobiliário. Porém, também há um movimento grande para usar blockchain na autenticação de produtos físicos, inclusive dentro do esporte.
Estima-se que, somente em 2021 no Brasil, a pirataria causou um prejuízo de R$ 9 bilhões às empresas de material esportivo. Claro que, infelizmente, muita gente opta por comprar produtos piratas. No entanto, há também inúmeras pessoas que o fazem sem saber que estão adquirindo itens não originais, dada a perfeição cada vez maior com que estes itens são produzidos. E é justamente aí que a blockchain pode ajudar.
É possível criar um registro em forma de NFT (mais sobre NFTs aqui) de cada produto que chega ao mercado, colocando detalhes, como numeração, data de fabricação e características físicas, entre outros. Neste caso, entretanto, é preciso criar uma ponte entre o produto e a rede, que pode ser feita de várias maneiras. A mais popular delas é usando chips NFC (Near Field Communication), mesma tecnologia utilizada no pagamento via cartão por aproximação, por exemplo. Basta colocar um chip no produto, vinculá-lo ao NFT e pronto: ao escaneá-lo com seu smartphone, você será levado a uma página que mostra todos os detalhes do produto, e o token será transferido para sua carteira digital, onde você poderá verificar a autenticidade. Caso queira revender tal produto posteriormente, quem o comprar fará o mesmo processo, e o token será automaticamente transferido para a carteira do novo dono.
Quando trabalhei como head de inovação no Atlético Mineiro, em 2021, lançamos a primeira camisa inteligente do Brasil, o Manto da Massa 2, e colocamos um chip em cada uma das mais de 120 mil camisas vendidas. Ao escaneá-la, as pessoas eram levadas para o aplicativo oficial do clube, onde tinham acesso a uma área exclusiva, e lá era realizado um registro dela na blockchain, certificando sua autenticidade para sempre.
O valioso mercado de memorabília esportiva poderá usufruir bastante da tecnologia da mesma forma. O amigo Samy Vaisman escreve sobre o assunto aqui na Máquina do Esporte. Estimado em US$ 26,1 bilhões em 2021, por movimentar tanto dinheiro, acaba atraindo indivíduos mal-intencionados, que buscam lucrar oferecendo itens falsos.
Para ajudar a solucionar o problema, a Chiliz anunciou recentemente a GameUsed, iniciativa para autenticação na blockchain de itens usados em jogos e eventos esportivos oficiais. Funciona assim: primeiro, o item escolhido (uma camisa usada por um atleta, por exemplo) é recolhido no vestiário e enviado para a sede da Chiliz. Lá, recebe um chip NFC, e é criado um NFT o representando digitalmente. Depois, os tokens, que atuam como certificados de autenticidade, são devolvidos ao cliente (no caso, o clube de futebol) para que sejam vendidos ou leiloados.
A pessoa que adquirir recebe o NFT em sua carteira e tem duas opções. Se ela vê aquela memorabília como um ativo de investimento (o que muitas vezes é o caso, dado que itens são vendidos por milhares ou milhões de reais), pode optar por ficar apenas com o token e deixar o item armazenado com a Chiliz, sem se preocupar com as condições de armazenamento, segurança e logística.
Já se ela revender tal item, precisará apenas transferir o token para o comprador, que passa a ser automaticamente o novo dono do bem físico. Se quiser ter o item consigo de fato, ela informa à Chiliz, que “queima” o token e envia o produto para o endereço informado. Um processo bem mais simples, seguro e barato do que acontece atualmente.
Além do NFT, o chip NFC também pode ser vinculado a conteúdos que aumentam o valor da memorabília. Imagine a camisa de um jogador que atuou em uma final, que possui gols e fotos armazenados, estatísticas da partida e um vídeo do próprio jogador que a usou mandando um recado. O mesmo pode ser aplicado a produtos vendidos em lojas oficiais para torcedores. Pode-se pensar em colocar totens com câmeras fotográficas em estádios, que, ao escanearem a camisa, tiram fotos e as armazenam na mesma, criando um histórico de lembranças de todos os jogos que a pessoa foi vestindo-a. Legal, não é? São muitas possibilidades de intersecção entre os mundos físico e digital, o que nos leva ao próximo assunto.
Produtos “figitais”
Se emitimos um certificado digital de autenticidade de um produto, por que não ir além, criar um “gêmeo digital” do mesmo e permitir que o comprador possa usá-lo em seu avatar, dentro de um metaverso?
Roupas e acessórios 100% digitais já são uma febre, especialmente entre os mais novos. Se você tem filhos, provavelmente sabe que a onda na nova geração é vestir os personagens em games como o Roblox ou o Fortnite para diferenciá-los dos demais. Marcas de peso, como Nike, Adidas, Gucci, Lacoste e diversas outras já perceberam isso e têm lançado de forma recorrente versões virtuais de seus famosos produtos, faturando milhões.
Mas a ideia de juntar as versões físicas e digitais (daí o nome “figital”) em uma só ainda está começando a ganhar tração. Aqui no Brasil, a Reserva, pioneira em iniciativas de Web3, lançou recentemente o Spriz, primeiro tênis “figital” do país. Foram quatro modelos, edição limitada e numerada, que dão ao comprador o par para uso na vida real, mas que também permitem o uso no Decentraland, um dos metaversos mais conhecidos. Há ainda outros benefícios, como uma loja exclusiva para quem tem os tokens e descontos na própria Reserva, entre outros.
Se a nova geração está cada vez mais imersa nos games e as organizações esportivas devem se portar como plataformas de entretenimento para poder atrair estes jovens, faz muito sentido para clubes de futebol, por exemplo, começar a pensar em lançar suas próprias versões “figitais”. Imagine que, ao comprar ou ganhar de presente uma camisa oficial, o(a) jovem possa trajá-la dentro do ambiente virtual, onde talvez passe mais tempo do que no mundo real. O impacto e a identificação certamente seriam muito maiores.
Sei que para muitos de nós, acima dos 35 anos, isso pode parecer uma grande bobagem, mas lembre-se que, até pouco tempo atrás, redes sociais também eram vistas desta maneira e hoje são parte fundamental das nossas vidas. Por isso, vale a pena abrir a cabeça e explorar novas oportunidades de conexão com o fã, mesmo que seja com o seu avatar.
Felipe Ribbe é diretor geral da Socios.com no Brasil, orientador de algumas empresas de Web3, consultor em inovação no esporte e escreve mensalmente na Máquina do Esporte