No mês em que assistimos à primeira edição da Copa São Paulo de Futebol Júnior Feminina no Brasil e que a Máquina do Esporte compartilhou a projeção feita pela empresa norte-americana de finanças Deloitte, apontando que as receitas globais do esporte feminino ultrapassarão a marca de US$ 1,28 bilhão pela primeira vez em 2024, minha coluna não poderia tratar sobre outro tema que não fosse o futebol feminino.
Já não é dúvida o quanto o futebol das meninas e mulheres é realidade nem tão pouco o quanto a modalidade está crescendo e se desenvolvendo sob todos os aspectos no Brasil e no mundo.
O desenvolvimento da qualidade do jogo, dos calendários, das receitas ligadas a patrocínio e bilheteria, a qualidade técnica das atletas que acompanha o desenvolvimento das múltiplas áreas que envolvem essa evolução. Tudo vem mudando de patamar em ritmo exponencial. Diante disso, decidi abordar uma área que, no meu entendimento, pode potencializar todo esse processo, caso seja trabalhada estrategicamente e com equivalente elevação do nível de profissionalismo: a gestão de carreira das atletas.
Roseli, ex-atleta de futebol, fez parte da primeira geração de atletas convocadas pela seleção brasileira em 1988. Ela nos representou na edição inaugural da Copa do Mundo Feminina e também na estreia nos Jogos Olímpicos de Atlanta 1996. Roseli faz parte da geração pioneira de atletas guerreiras que abriram caminho para que estivéssemos onde estamos hoje. Além disso, concedeu à audiência desta coluna o privilégio de compartilhar sua visão sobre aspectos importantes da modalidade.
“Antes, era muito difícil jogar bola por ser mulher, não tínhamos apoio, quase ninguém olhava com bons olhos. Antes, eram dois campeonatos por ano, que duravam oito meses, e, depois disso, todas eram dispensadas. Aí, batia o desespero. Sem clube e sem dinheiro, muitas tinham dificuldades financeiras. Minha carreira foi gerenciada por mim mesma. Eu não pensava em ninguém para me gerenciar, até porque ninguém queria saber da modalidade. O meu objetivo era só ajudar minha família. Os times me chamavam, e eu ia sem restrições. Hoje, tenho alguém que me ajuda nessa questão”, disse Roseli.
O relato da ex-jogadora mostra os obstáculos gigantescos enfrentados pelo futebol feminino naquela época e serve para nos levar ao ponto de partida da reflexão proposta aqui. Certamente a falta de um processo de gestão de carreira vinha para ampliar as dificuldades ou, no mínimo, deixar de aproveitar as escassas oportunidades.
É fato que, para as atletas e para aqueles que estão dispostos a investir na modalidade, o futebol feminino ainda enfrenta muitos desafios e restrições. No entanto, é válido refletir sobre as oportunidades e considerar como podemos ampliar essa jornada positiva, que apresenta perspectivas de retorno para as diversas partes interessadas (stakeholders) da indústria do futebol.
Enquanto escrevo esta coluna, Rafaela Esteves, coordenadora das categorias de formação do futebol feminino da Ferroviária, acompanha sua equipe em uma temporada em Madri, na Espanha. A equipe do interior paulista jogou e venceu o time do Real Madrid, o que nos aponta para duas excelentes leituras sobre o momento atual: de que são reais as chances de expandir o futebol feminino brasileiro para muito além das nossas fronteiras e que o nível esportivo está evoluindo, assim como a capacidade das atletas brasileiras vem sendo conhecida e reconhecida cada dia mais.
“Cada vez mais as mulheres estão buscando o seu espaço. Cada vez mais novas essas meninas estão tendo oportunidade de ter esse intercâmbio esportivo e cultural. Hoje, fomos ao Santiago Bernabéu, e ver as atletas encantadas com os troféus, com a história, foi fantástico. Uma experiência incrível. Elas estão radiantes. As atletas que estão na seleção hoje não tiveram nem 10% do que as atletas mais novas têm atualmente e, estando aqui no clube, vemos que de fato se faz algo estruturado e que dá continuidade na formação delas, no desenvolvimento, para que elas tenham a transição (…), passem pelas categorias do clube e cheguem ao profissional. Claro que temos pontos que estamos longe do futebol masculino, sem dúvida, mas cada vez mais está tendo visibilidade, investimento e apoio. Cada vez mais as pessoas estão interessadas e querendo conhecer, investir e apoiar o futebol feminino. Isso é importante e enaltece muito o trabalho de todo mundo”, relatou Rafaela.
“Hoje em dia, muita coisa mudou. Vejo que cada vez mais existem empresários que são do masculino e estão entendendo o cenário e atendendo o feminino, ou novas agências sendo criadas específicas para o futebol feminino. Vemos estes dois cenários. Também há muitos empresários de fora para tentar agenciar a atleta agora e levá-la para lá. A maioria das nossas atletas são assistidas por empresários e intermediários”, continuou a coordenadora da Ferroviária, falando sobre a realidade do desenvolvimento do plano de carreira das atletas.
Esse processo de ampliação da atração do futebol feminino como negócio rentável e atrativo é um acelerador para que a profissionalização no planejamento de carreira das atletas ganhe gestores e empresas especializadas. A cada passo na direção do protagonismo da modalidade, esse movimento se fará mais presente.
Para Carol Pohl, sócia-proprietária da Sow Sports, agência focada no gerenciamento de carreira de atletas e comissões técnicas de futebol feminino, “dentro do processo evolutivo do futebol feminino e desenvolvimento da modalidade no Brasil e no mundo, a gestão de carreira de atletas é um ponto fundamental e vem sofrendo mudanças, visando acompanhar a evolução do esporte”.
Carol ressaltou que “pensando em profissionalização das atletas, passamos por pontos como modelos de contrato, que hoje no Brasil têm formatos que consideram o salário total CLT, parte em trabalho e outra parte como direito de imagem, e caminham para que as jogadoras e comissões técnicas tenham vínculos trabalhistas reais e justos com seus empregadores, os clubes”. Para ela, “esse ponto gera a necessidade de uma gestão profissional de suas carreiras, com um trabalho 360 graus”.
A gestão de carreira feita estrategicamente e com o objetivo de potencializar a evolução da jornada profissional da atleta e de todos os envolvidos engloba temas como marca pessoal, gestão financeira, contábil e jurídica, além da análise de cenários e definição clara de objetivos de curto, médio e longo prazos. Oportunidades dentro e fora de campo são geradas a partir desse processo, assim como é (ou deveria ser) no futebol masculino.
Carol ainda compartilhou a metodologia de trabalho que valida a ideia sobre gestão de carreira estratégica:
“Aqui, na Sow Sports, acreditamos que a carreira deve ser conduzida a partir de um conjunto, um trabalho em equipe. Do nosso lado, buscamos encaixar oportunidades esportivas e comerciais dentro dos objetivos de carreira de cada atleta, que são construídos em conjunto, com o nosso time e a atleta em sintonia para que tenhamos o melhor cenário e opção possíveis. É um trabalho próximo, que exige comprometimento dos dois lados e transparência em cada decisão. Do lado da atleta, entendemos ser essencial trabalhar a autorresponsabilidade, que é a capacidade e disposição da jogadora em assumir o controle da própria carreira, desenvolvimento e bem-estar. Isso implica que a atleta reconhece sua influência sobre seu desempenho e sucesso, tomando a iniciativa em aspectos como treinamento, condicionamento físico, estilo de vida e desenvolvimento pessoal”, destacou.
Encerro essa coluna resgatando a afirmação de que não resta dúvida de que o futebol feminino vem ganhando espaço e relevância exponenciais no Brasil e no mundo. Essa realidade passa pelo desenvolvimento da construção de planos de carreiras igualmente mais profissionais, que contemplem as múltiplas áreas de oportunidade ligadas à modalidade. Assim como a bola já não rola ao acaso nos campos em que as meninas são as protagonistas, os processos e a gestão também não devem deixar margem para falta de prioridade e de alta performance.
Ana Teresa Ratti possui mais de 20 anos de experiência corporativa, é mestra em Administração, trabalha atualmente com gestão esportiva, sendo cofundadora da Vesta Gestão Esportiva, e escreve mensalmente na Máquina do Esporte