Green Bay Packers: Um modelo de governança único

Torcedores acionistas são os donos do Green Bay Packers - Reprodução / Instagram (@packers)

Em agosto de 2021, o Congresso Brasileiro aprovou a Lei Federal 14.193 (“Lei SAF”). A Lei SAF é o novo marco regulatório no futebol, que está permitindo e estimulando a transformação das equipes de futebol em empresas privadas. Atualmente, os maiores e principais clubes brasileiros ainda são associações civis sem fins lucrativos.

Sob a estrutura de entidade sem fins lucrativos, esses clubes sobreviveram por mais de 100 anos colecionando titulos e glórias, sem falar no aumento exponencial de sua base de torcedores. No entanto, atualmente, alguns desses clubes enfrentam um endividamento relevante e seu desempenho esportivo está muito aquém do seu potencial.

E, passados quase três anos da entrada em vigor dessa nova lei, muitos desses clubes não se transformaram em entidades privadas, mesmo com a Lei SAF trazendo uma regra de renegociação das dívidas pré-aprovada, um regime tributário próprio com alíquota unificada, aprovação para remunerar seus administradores com salários de mercado, bem como mais segurança jurídica que permite atrair novos investimentos privados para fortalecer seus elencos e modernizar seus estádios e área de treinamento.

Um dos principais motivos para que a transformação em empresa privada (SAF) não tenha ainda ocorrido é a resistência dos atuais dirigentes e torcedores em transferir a propriedade desses times para investidores privados.

Dos 10 clubes da Série A que ainda permanecem operando como entidades sem fins lucrativos, muitos são clubes de massa com dezenas de milhões de fãs que resistem em aceitar o modelo de que a propriedade do seu time venha a ser detida por um indivíduo muito rico, um fundo soberano de um governo e/ou um fundo de private equity sem vínculos com o “seu” clube.

Essa resistência se dá pela questão reputacional (por exemplo: o time da NFL Washington Commanders teve recentemente uma queda importante na sua popularidade devido às atitudes de seu então proprietário Daniel Snyder) ou foco predominante na valorização do ativo e obtenção de um ganho de capital no médio e longo prazo.

Um exemplo é o caso do Manchester United adquirido pela família Glazer nos anos 2000 por aproximadamente US$ 500 milhões e tendo sido vendido parcialmente no início deste ano com o time avaliado em aproximadamente US$ 5 bilhões. Nesse mesmo período em que o capital investido multiplicou por 10 vezes em dólar, o desempenho esportivo do Manchester United ficou muito abaixo desse estrondoso ganho financeiro da família Glazer.

A questão que permanece é: existe uma solução viável para que clubes de futebol do Brasil se tornem uma entidade privada denominada Sociedade Anônima do Futebol (SAF) e não estejam vinculados a grupos financeiros privados cujo objetivo é vendê-los daqui alguns anos com o maior ganho de capital possível?

Além disso, é possível identificar um modelo de governança de sucesso no mundo esportivo, em que as vantagens de transformação em SAF sejam capturadas, mas sem que se perca a natureza de uma gestão sem fins lucrativos e com foco nos resultados esportivos?

Green Bay Packers: um modelo de gestão a ser avaliado

Numa primeira análise, pode parecer difícil responder as duas perguntas acima, associando a alguma equipe bem-sucedida no mundo dos esportes. Mas para surpresa de muitos, existe uma entidade esportiva americana na qual podemos e devemos nos debruçar para entender como funciona.

Trata-se do time de futebol americano Green Bay Packers, da National Football League (NFL). O Green Bay foi fundado em 1919 na cidade de Green Bay, Wisconsin, e é a terceira franquia mais antiga da NFL e com maior número de vitórias na história da liga.

Seu modelo de clube empresa que não visa à distribuição de lucros a acionistas e, tendo como proprietários seus próprios torcedores, é único nos EUA (e talvez no mundo). Esse modelo de governança permite que sua fanática torcida tenha torcedores em todo o país, mesmo tendo sede numa pequena cidade do norte dos EUA e num mercado
consumidor pequeno.

Sua competitividade é inegável, tendo sido capaz de captar dinheiro junto a seus torcedores seis vezes em sua história, sendo a última em 2021/2022, quando 176.160 torcedores adquiriram ações a US$ 300 cada uma, arrecadando um total de US$ 66 milhões. Vale destacar que somente 17% dos compradores eram residentes no estado de Wisconsin, o que mostra o impacto nacional do Green Bay. Após essa última rodada de investimentos, o Green Bay passou a ter mais de 537.000 acionistas.

Esses acionistas/torcedores não compram as ações como investimento financeiro ou poupança, mas sim para participar das decisões em assembleias e fortalecer o legado e tradição do time através de sua torcida fanática.

Importante esclarecer que o Green Bay não tem ações listadas em bolsa de valores. Apesar dessas ações terem direito a voto e permitirem que seus acionistas elejam os seus administradores, elas têm restrição de circulação, sendo vedada a transferência ou venda a terceiros. A única exceção é a doação a herdeiros diretos ou a sucessores em caso de morte. Caso o torcedor deseje vender, elas somente poderão ser recompradas pelo próprio Green Bay por um valor nominal e simbólico.

A Comissão de Valores Mobiliários americana (Securities and Exchange Commission-SEC) emitiu um entendimento de que devido à essas características (incluindo a vedação à distribuição de lucros mencionada acima), a ação de emissão do Green Bay não é um valor mobiliário, ou seja, um investimento com valor econômico. Portanto as captações de recursos de torcedores (conhecidas como follow on) não estão sujeitas às regras gerais do mercado de capitais. Mesmo não sendo obrigado a seguir e registrar a oferta na SEC, o Green Bay segue os procedimentos de governança e transparência, como por exemplo a publicação do Memorando de Oferta e se comprometendo a utilizar os recursos levantados junto aos torcedores de certa maneira.

Em sua última oferta em 2021/2022, o Green Bay se comprometeu a usar os recursos obtidos juntos aos torcedores para melhorias na estrutura do seu famoso estádio chamado Lambeau Field.

Como curiosidade e indício de que o modelo do Green Bay é aderente à realidade dos times de massa do futebol brasileiro, numa pesquisa recente sobre o time da NFL preferido pelos brasileiros, o Green Bay ficou em primeiro lugar. Também não é por acaso que foi escolhido para jogar o primeiro jogo da NFL a ser realizado no Brasil, em setembro de 2024.

Vale a pena transcrever o que o ex-presidente Bill Clinton comentou sobre os Packers:

“Eu quero falar isso não só como presidente, mas como cidadão. Em um mundo em que o esporte profissional se torna, me parece, em cada modalidade, cada vez mais transitório, em que os jogadores têm que cuidar de si mesmos no que pode ser um período de vida relativamente curto como atletas profissionais, e as pessoas mudam de time e de cidade, o Green Bay é algo especial, único, tradicional e comovente. Os donos do time são pessoas das mais diversas origens e características. Os lucros são investidos de volta no time. Os jogadores e os técnicos têm uma relação única com os torcedores, que todos nós que assistimos aos jogos mesmo pela TV podemos sentir.”

Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos

Por conta do advento das redes sociais, que aumentaram muito a visibilidade e a rapidez de propagação das informações e possibilidade de contato direto entre os clubes de futebol e seus torcedores, acreditamos que o modelo de governança e estrutura societária do Green Bay Packers pode ser extremamente positivo, tanto esportivamente como financeiramente em comparação à venda de participação acionária a um investidor financeiro.

Investidor esse que não tem qualquer vínculo com o clube e seu objetivo primordial é vender a sua participação acionária no futuro, com vultosos lucros.

Aderência do modelo do Green Bay Packers à SAF

O objetivo deste artigo é trazer aos dirigentes do futebol brasileiro, torcedores, jornalistas, anunciantes, jogadores, investidores, agentes, governo, ou seja, para toda a comunidade que vive o futebol brasileiro (seja por paixão clubística, necessidade de regulação, ou interesse comercial), uma nova alternativa: (i) de captação de recursos; (ii) que evite que investidores privados se tornem proprietários de clubes sem que tenham qualquer vínculo esportivo e emocional; e (iii) de governança mais professional, que permita aos clubes de massa do futebol brasileiro aderir à Lei SAF, mas mantendo com seus sócios e torcedores a propriedade e a definição do destino dos “seus” clubes.

Num primeiro momento você poderia questionar: como fazer para que uma empresa privada que observe os requisitos da Lei SAF seja detida por seus torcedores, obtenha recursos junto a esses mesmos torcedores, passe a ter bons níveis de governança corporativa e, ainda, atenda aos interesses (ganhar títulos com a maior frequência possível) de seu torcedor fanático e apaixonado?

Então, com o objetivo de trazer uma proposta objetiva e clara inspirada no modelo do Green Bay Packers, sugerimos uma série de ações e medidas que poderiam ser analisadas pelos conselhos deliberativos das associações sem fins lucrativos e posteriormente adotadas por um clube de futebol de massa no Brasil:

1) Todos os ativos, receitas, direitos, dívidas, contratos e obrigações relacionados às atividades do futebol seriam vertidos da entidade sem fins lucrativos para uma nova companhia (“Sociedade Anônima do Povo – SAP”) privada formada como uma SAF, nos termos da Lei 14.193/21;

2) Neste primeiro momento, a SAP seria 100% controlada pela associação sem fins lucrativos que atualmente detém e gere o time de futebol (“clube social”);

3) O presidente do clube social nomearia um grupo de executivos remunerados, incluindo por exemplo: diretor de operações (COO),diretor de futebol e diretor financeiro (CFO);

4) A SAP passaria a seguir os procedimentos habituais de sociedade anônimas do mesmo porte, sendo auditada por uma das grandes empresas de auditoria e com regras de governança e compliance observando as melhores práticas;

5) Com o intuito de captar recursos para fazer frente a novos investimentos e redução de dívida, a SAP faria uma proposta aos seus torcedores para que comprem novas ações de sua emissão, a chamada emissão primária. Essa ação da SAP teria as seguintes características:

a. O preço de emissão da ação baseado em laudo e avaliação de banco de primeira linha. O número de ações a serem emitidas deverá ser tal que não permita que o clube social perca o controle da maioria das ações da SAP;

b. Todas as ações com direito a voto;

c. Todas as ações com restrição de circulação, sendo vedada a transferência ou venda a terceiros, podendo somente ser doadas a herdeiros diretos ou a sucessores em caso de morte. Caso o torcedor deseje vender, elas somente poderão ser recompradas pela própria SAP por um valor simbólico (i.e.: R$0,01);

6) Portanto, as ações não teriam valor de mercado ou qualquer valor econômico de revenda, mas dariam poder de voto em assembleias gerais da SAP. Os torcedores não comprariam as ações como investimento financeiro ou poupança, mas sim para participar das decisões em assembleias e fortalecer o legado e tradição de um time de massa com torcida fanática, passando a ser verdadeiramente de seus torcedores;

7) O estatuto teria uma previsão de que todo o lucro apurado obrigatoriamente tem que ser reinvetido na SAP, fortalecendo o princípio de que a ação não é um valor mobiliário que caracteriza investimento ou poupança popular. Além disso, com o reinvestimento do lucro no próprio time, o desempenho esportivo tende a ser mais bem-sucedido (sempre observada a previsão da Lei SAF de repasse de valores de parte da receita para a associação sem fins lucrativos originária);

8) A única exceção poderia ser a alocação de parte do lucro para criação e manutenção de uma fundação para executar projetos sociais relacionados ao desenvolvimento de esportes no clube social que deu origem à SAP;

9) Após a realização da captação dos recursos junto aos torcedores, a SAP continuaria controlada pelo clube social, com um conselho de administração com a maioria dos seus membros também escolhido pelo presidente do clube social, mas teria acionistas minoritários torcedores com a função de acompanhar e fiscalizar os resultados e funcionamento da SAP;

10) Outro ponto a ser observado é alocação das ações na oferta. A regra de alocação deve buscar a pulverização máxima da distribuição dos novos acionistas entre pessoas físicas, podendo ser ainda criadas regras de restrição de poder de voto para acionistas que detenham mais do que um determinado percentual de ações;

11) A assembleia de acionistas da SAP se reuniria para analisar e aprovar as demonstrações financeiras, eleger os membros do Conselho de Administração, aprovar eventuais novas captações de recursos junto aos torcedores, bem como alterações no estatuto social. Eventuais alterações relevantes no estatuto exigiriam quórum qualificado de aprovação;

12) Os acionistas da SAP não se confundem com os detentores de ingressos de temporada (season tickets) ou programas de fidelização do torcedor para frequentar os jogos nos estádios. São programas distintos. Os acionistas da SAP têm o poder de influenciar as decisões de governança do seu time, enquanto o detentor de ingressos (season ticketholders) acompanha seu time presencialmente no estádio. A princípio, não há qualquer venda casada ou conjugada entre eles, sendo fontes de receitas diversas para a SAP.

Conclusão

A adoção de modelo de governança e estrutura jurídica similar ao do Green Bay Packers permite aos clubes brasileiros a possibilidade de:

(i) Se beneficiarem dos incentivos trazidos pela Lei SAF, quais sejam: renegociação das dívidas com regras pré-aprovadas, um regime tributário próprio com alíquota unificada e capacidade de atrair executivos remunerados com salários de mercado;

(ii) Captação de recursos novos junto aos seus torcedores com participação minoritária, permanecendo o clube social com o controle das decisões e a maioria das ações da SAP;

(iii) Todo lucro que vier a ser obtido pela SAP será integralmente reinvestido no próprio futebol, alinhando os interesses do acionista controlador, que é o clube social, bem como dos acionistas minoritários, que são seus torcedores;

(iv) Não há qualquer possibilidade de venda da SAP a investidores privados, bilionários, empresários, fundos de investimento ou fundos soberanos, uma vez que as ações da SAP têm restrição de transferência e não podem ser vendidas pelo clube social ou pelos torcedores;

(v) Adoção de um sistema de governança de sociedades anônimas do mesmo porte, em que os acionistas minoritários (neste caso, seus torcedores) terão mais voz e influência na fiscalização das ações e decisões dos dirigentes, devendo esses mesmos dirigentes cumprir seus deveres fiduciários e podendo ser responsabilizados pessoalmente por má gestão. Além disso, a SAP estaria sujeita a auditoria externa, com regras de governança e compliance observando as melhores práticas do mercado;

(vi) O programa de sócio-torcedor seria totalmente desvinculado das decisões políticas do clube social ou da gestão da SAP. Trata-se de um produto a ser trabalhado pela equipe de marketing junto aos torcedores para maximizar a experiência dos torcedores no estádio. Aliás, essa é a prática adotada por todos os times de massa, sejam clubes sociais, como Real Madrid e Barcelona, ou clube-empresas detidos por seus torcedores, como o Bayern de Munique, Borussia Dortmund ou o próprio Green Bay Packers;

(vii) Manutenção do clube social como entidade sem fins lucrativos e exercendo as atividades que atualmente já fazem, mas como entidade separada das atividades do futebol. Com o compromisso de repasse que a Lei 14.193 exige que seja feito pela SAP ao clube social, este poderá ter seu orçamento independente para condução de suas atividades, incluindo as mensalidades pagas pelos sócios que frequentam o clube social.

José Luis Camargo Jr. é advogado especialista em direito societário
José Sarkis Arakelian é consultor, professor e doutor em estratégica de marketing

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