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Mecanismo de solidariedade: O que é e quando se aplica

Tema voltou à tona com o fim da janela de transferências ocorrido na semana passada; iniciativa consiste em uma recompensa financeira aos clubes que se dedicam à formação de jogadores

Formado no São Paulo, atacante Antony deixou o Manchester United de forma definitiva e será jogador do Betis até 2030 - Reprodução / realbetisbalompie.es

Na semana passada, chegou ao fim mais uma janela de transferências. Em razão disso, foram divulgadas diversas notícias acerca de tratativas, transferências e permanências no mercado do futebol.

Em meio a tantas operações e informações, sempre surge o tema do mecanismo de solidariedade. A título de exemplo, ganhou repercussão o valor que será recebido pelo São Paulo em razão das transferências do atacante Antony, do Manchester United para o Betis, e do goleiro Ederson, do Manchester City para o Fenerbahçe.

A ideia desta coluna, então, é esmiuçar o mecanismo de solidariedade, expondo o conceito e a aplicação na prática.

Em resumo, o mecanismo de solidariedade consiste em uma recompensa financeira aos clubes que se dedicam à formação de jogadores. A ideia é, então, que a agremiação que contribuiu para o desenvolvimento da carreira de um determinado atleta continue a receber um percentual do valor de suas transferências futuras, ao longo de toda a sua trajetória esportiva.

É importante destacar que o mecanismo de solidariedade se aplica a transferências onerosas. Poderá haver, assim, discussões quando a transferência envolver contraprestação que não seja o pagamento de um valor ajustado, como no caso de troca entre jogadores.

Além disso, o mecanismo de solidariedade é diferente das chamadas indenizações por formação, em âmbito nacional, ou “training compensation”, em âmbito internacional. Tais indenizações podem ser objeto de uma coluna futura, mas é importante salientar que consistem em pagamentos que devem ser feitos ao clube formador durante um determinado período da carreira do jogador, ao passo que o mecanismo de solidariedade persiste ao longo de toda a sua trajetória profissional.

Apesar disso, o mecanismo de solidariedade não é aplicável a toda e qualquer transferência, possuindo, ainda, distinções caso a operação seja internacional ou nacional.

Com efeito, no âmbito internacional, o mecanismo de solidariedade possui previsão no “Regulations on the Status and Transfer of Players” (RSTP) ou “Regulamentos sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores” (em tradução livre), da Fifa. Esse documento prevê que os clubes que tenham contribuído com a formação do jogador, enquanto ele possuía de 12 a 23 anos, recebem um percentual de até 5% do valor de qualquer transferência que o envolva.

Esse valor é calculado de acordo com o período em que o atleta efetivamente esteve na agremiação. Assim, o clube faz jus a um percentual do total equivalente a 5% da operação, que difere a depender da idade em que esteve na agremiação, considerando-se a temporada esportiva de cada aniversário:

Atualmente, esse pagamento deve ser feito de forma automática, por meio de um sistema da Fifa denominado “Clearing House”, que começou a operar em novembro de 2022. A cada transferência internacional, o próprio sistema identifica, assim, os clubes que fazem jus a um percentual, a título de mecanismo de solidariedade, gerando um passaporte esportivo provisório do jogador.

A partir disso, cabe às agremiações efetuarem seu cadastro na plataforma e propor eventuais alterações no passaporte esportivo. Após a elaboração do passaporte esportivo final, a própria “Clearing House” determina o pagamento do valor devido a cada clube.

Essa nova sistemática é importante, pois, antes da “Clearing House”, cabia a cada clube identificar a ocorrência da transferência de um jogador que tivesse formado e, então, pleitear o valor que entendesse devido. Consequentemente, segundo um relatório divulgado pela Fifa, no modelo anterior, o equivalente a 80% do montante devido a título de mecanismo de solidariedade não era efetivamente pago. Afinal, a cobrança demandava dos clubes um rastreamento constante da situação dos jogadores que passassem por seu plantel.

Além disso, de acordo com o mesmo relatório, ao longo de seus 24 primeiros meses de atuação, a “Clearing House” distribuiu o valor total de US$ 156 milhões a mais de mil clubes formadores (esse valor compõe a referida soma não somente daqueles pagos a título de mecanismo de solidariedade, mas também os pagos a título de “training compensation”). Ainda há, porém, espaço para melhoras.

Diversos clubes nacionais relataram dificuldades em finalizar seu registro na plataforma, razão pela qual ainda não obtiveram os valores a que fariam jus. Nesse sentido, de acordo com o relatório divulgado pela Fifa, até o momento, o Brasil foi o 10º país mais beneficiado pelos pagamentos da “Clearing House”, tendo as agremiações brasileiras recebido US$ 2,7 milhões. Tendo em vista a força das categorias de base nacionais, é possível que essa participação aumente após a finalização desses registros.

Ocorre, porém, que esse mecanismo de solidariedade previsto no RSTP se aplica apenas a transferências internacionais, isto é, quando o atleta se transfere para um clube que está filiado a uma associação nacional distinta daquela em que estava a agremiação anterior.

É o caso, por exemplo, do atacante Antony, que estava no Manchester United, filiado à Federação Inglesa de Futebol, e se transferiu ao Betis, filiado à Federação Espanhola. Em razão disso, o São Paulo, clube no qual o jogador permaneceu até seus 20 anos de idade, receberá parte do valor da operação, a título de mecanismo de solidariedade. Por outro lado, se o atacante tivesse se transferido para o Liverpool, por exemplo, que também é filiado à Federação Inglesa de Futebol, nenhum valor seria devido ao clube paulista.

No âmbito brasileiro, o mecanismo de solidariedade também tem regulamentação própria. O instituto já estava previsto na Lei Pelé e foi reiterado na Lei Geral do Esporte, inclusive com o aumento do percentual destinado aos clubes formadores. Assim, em caso de transferência envolvendo clubes brasileiros, uma parte da operação também é destinada à agremiação que tenha contribuído com a formação do jogador.

A diferença está, então, no cálculo do valor devido. O mecanismo de solidariedade brasileiro alcança o percentual total de 6%, distribuído entre os clubes que contribuíram para a formação do jogador entre os 12 e os 19 anos, da seguinte forma:

Vale destacar ainda que, diferentemente do que ocorre com a indenização por formação, não é necessário que o clube detenha o certificado de clube formador para poder receber o mecanismo de solidariedade nacional.

O mecanismo de solidariedade configura, assim, uma fonte de renda que pode ser extremamente relevante, mesmo para clubes com projetos ainda em construção.

Alice Laurindo é mestra em Processo Civil e bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), em que é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo. Além disso, atua como advogada no escritório Bichara e Motta Advogados, com foco nas áreas de Direito Desportivo, Direito do Entretenimento e Contencioso Cível, e é membra da IB|A Académie du Sport e do Laboratório de Pesquisa da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD LAB)

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