Em uma coluna do ano passado, foram feitas algumas considerações sobre o então projeto de lei que propunha a Nova Lei Geral do Esporte. À época, o documento já havia sido aprovado pelo Senado e aguardava sanção presidencial.
Nos últimos dias, porém, o documento foi sancionado pelo Presidente da República, com vetos significativos. Assim, a Nova Lei Geral do Esporte entrou em vigor em 15 de junho de 2023, com uma redação distinta do que a que havia sido analisada anteriormente. Diante disso, esta coluna retomará o tema, realizando novos comentários, diante de sua versão final.
Diante do espaço desta coluna, adverte-se desde já que não se tem a pretensão de esgotar o assunto. No entanto, ao longo deste texto, busca-se abordar, de forma sucinta, considerações gerais sobre a Nova Lei Geral do Esporte; os principais pontos trabalhistas da Nova Lei Geral do Esporte; e algumas previsões interessantes desse documento.
Considerações gerais sobre a Nova Lei Geral do Esporte
Conforme analisado anteriormente, a Nova Lei Geral do Esporte tinha por intuito centralizar as leis referentes à atividade esportiva. Como consequência, houve a revogação da Lei n. 8.650/1993, que regulamentava a atividade do técnico de futebol; da Lei n. 10.671/2003, mais conhecida como Estatuto do Torcedor; da Lei n. 10.891/2004, que instituiu a Bolsa-Atleta; e da Lei n. 12.867/2013.
Com efeito, os temas abordados por essas leis passaram a ser tratados de forma unificada na Nova Lei Geral do Esporte.
É interessante notar, porém, que não houve a revogação integral da Lei n. 9.615/98, mais conhecida como Lei Pelé e que, até então, regulamentava de forma geral a matéria esportiva. Também permanece vigente a conhecida Lei das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs).
Além disso, a redação da Nova Lei Geral do Esporte aprovada pelo Senado previa a obrigação de a lei ser aplicada em harmonia com atos internacionais aderidos pelo Brasil, sem substituir normas internas e transnacionais das organizações esportivas.
Isso significa dizer, em outras palavras, que o documento deveria ser interpretado de acordo com tratados internacionais referentes ao esporte, assim como não substituiria normas próprias de entidades como a Federação Internacional de Futebol (Fifa) e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Essa disposição poderia facilitar a tese defendida por alguns de que os regulamentos esportivos deveriam ser aplicados até mesmo por juízes em ações que tramitem na Justiça Comum ou na Justiça do Trabalho, tema que é alvo de frequentes polêmicas.
No entanto, essa previsão foi vetada pelo Presidente da República, por considerar que previsão tão genérica de observância de documentos esportivos poderia trazer insegurança jurídica, além de se poder discutir sua inconstitucionalidade.
Também foi objeto de veto a previsão que constava no Projeto de Lei de que seria responsabilidade do Estado garantir a segurança e a integridade física dos torcedores em eventos esportivos, assunto que também se encontra em voga diante dos últimos protestos realizados, por exemplo, pelos torcedores do Santos e do Vasco.
Como justificativa para tal veto, defendeu-se que os torcedores estariam mais bem protegidos se essa responsabilidade fosse compartilhada, destacando-se o papel dos próprios clubes e das entidades de administração do desporto.
Principais pontos trabalhistas da Nova Lei Geral do Esporte
Conforme relatado anteriormente, ao longo das últimas rodadas da edição de 2022 do Campeonato Brasileiro de Futebol Masculino, observou-se o protesto dos atletas às disposições trabalhistas do projeto da Nova Lei Geral do Esporte. O referido cenário se estendeu para as redes sociais, evidenciando um conflito entre a opinião de parte dos clubes e a de seus elencos.
No entanto, na versão sancionada da lei, foram vetados alguns dos pontos que mais suscitaram polêmica.
Para uma melhor compreensão da discussão, retomam-se abaixo alguns dos principais pontos de discussão:
Natureza das premiações
É notório que, no âmbito do esporte profissional, os clubes comumente pagam aos seus jogadores bônus em razão de sua contratação (luvas) ou de seu desempenho esportivo (bicho).
Atualmente, o art. 31, §1º, da Lei Pelé, estabelece que gratificações ou prêmios pagos aos jogadores que estejam incluídos no contrato de trabalho possuem natureza de salário. Isto é, tais valores são considerados para fins de reflexos salariais, como cálculo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), das férias e do 13º salário.
O art. 85, §9º do projeto de lei, por sua vez, dispõe de forma diversa, estabelecendo a natureza cível dos valores, o que reduz os reflexos trabalhistas incidentes aos jogadores.
A referida redação foi mantida na versão sancionada pelo Presidente da República. Convém expor, porém, que o tema já era alvo de discussões mesmo diante da lei anterior. Com efeito, é comum que as luvas sejam ajustadas em contrato de imagem e que o bicho seja objeto de contratação verbal, o que dificulta consideravelmente o reconhecimento da natureza salarial.
Cláusula compensatória
O contrato especial de trabalho desportivo, celebrado entre os atletas profissionais e os clubes, possui prazo determinado. Ademais, como forma de garantir o respeito a esse prazo, é obrigatório que contenham uma cláusula compensatória.
Em termos simplificados, trata-se de uma multa que é devida aos jogadores nos casos de rescisão indireta causada por culpa da agremiação (ao não pagar salário, por exemplo) ou de dispensa sem justa causa.
O valor da cláusula compensatória é estabelecido livremente entre as partes, de acordo com parâmetros legais. Normalmente, ela é fixada no patamar mínimo permitido, ou seja, o valor total de salários mensais a que o jogador teria direito até o fim do contrato.
No modelo atual, com a rescisão, esse valor seria devido ao jogador em uma parcela única.
Constata-se, assim, que a cláusula compensatória configura uma forma de garantir que os clubes respeitem o prazo estabelecido entre as partes para duração do contrato e sejam até mesmo cautelosos nos termos oferecidos aos jogadores no momento de sua contratação.
Apesar disso, o projeto de lei trazia alterações significativas no tema. Com efeito, havia a previsão de que a cláusula compensatória seria paga de forma parcelada, devendo haver o pagamento mensal, nos mesmos termos em que o salário seria pago, caso o contrato não tivesse sido rescindido.
Dessa forma, apenas haveria o vencimento antecipado das parcelas vincendas e a possibilidade da cobrança judicial do valor total devido pelo clube, caso a agremiação deixasse de pagar ao menos duas parcelas.
Ainda mais relevante e polêmica, porém, era a previsão de que as parcelas deixariam de ser devidas, caso o atleta fosse contratado por uma nova agremiação mediante salário igual ou superior ao anterior. No caso do novo salário ser inferior, apenas seria devida pelo ex-empregador a diferença.
Ressalte-se que os clubes frequentemente utilizam judicialmente o argumento da possibilidade de reduzir o valor da cláusula compensatória em razão de um novo contrato do atleta. No entanto, não é comum que essa defesa seja aceita.
Somando-se a isso o fato de que é extremamente corriqueiro que os atletas sejam rapidamente contratados por uma nova agremiação após a rescisão antecipada de seu contrato de trabalho, constata-se que essa alteração traz impactos significativos aos jogadores.
Ambas as alterações, porém, foram vetadas pelo Presidente da República, de modo que não estão em vigor.
Adicional noturno
Também não são raras as discussões atuais acerca da possibilidade dos atletas profissionais de futebol receberem adicional noturno. Afinal, é comum que as partidas aconteçam à noite.
Nos termos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no caso do trabalho urbano, considera-se como noturno aquele realizado das 22h às 5h, o que abrange o horário de muitos jogos.
A redação aprovada da Nova Lei Geral do Esporte, porém, estabelece que, para os atletas profissionais, o período considerado noturno é das 23h59 às 6h59, o que deverá reduzir significativamente as hipóteses de cabimento de adicional noturno.
Direito de imagem
Não é de hoje que se observa que parte da remuneração dos jogadores é paga a título de direito de imagem. Em muitos casos, isso se justifica em razão da efetiva utilização da imagem do atleta pelo clube. Em outros, porém, a prática parece estar atrelada a uma tentativa de diminuir os reflexos salariais do valor pago.
Atualmente, a Lei Pelé estabelece que até 40% da remuneração do jogador poderá ser paga a título de direito de imagem. A redação aprovada da Nova Lei Geral do Esporte manteve a redação do projeto, mas aumentou esse percentual para 50%, o que trará, então, redução de até 10% dos reflexos salariais devidos ao atleta.
Algumas previsões interessantes da Nova Lei Geral do Esporte
Apesar das polêmicas em razão das disposições trabalhistas, o Projeto de Lei também trazia previsões interessantes. Assim, para não dizer que não falamos das flores, mencionam-se algumas delas.
Um ponto relevante do Projeto de Lei, que foi mantido na versão sancionada, é o aumento das exigências legais para que um clube seja considerado formador. Assim, amplia-se a proteção dos atletas em formação.
Outra questão digna de nota diz respeito à rescisão indireta no caso de inadimplência do clube. Nos termos da Lei Pelé, isso dependia do atraso, em todo ou em parte, no pagamento da remuneração do jogador por mais de três meses. Já na Nova Lei Geral do Esporte, o prazo foi reduzido para dois meses, aproximando-se, assim, do modelo estabelecido pela Fifa.
Também é relevante a previsão de que, no caso do futebol, o primeiro contrato de trabalho não poderá ser superior a três anos. Ocorre que, no modelo atual, há incompatibilidade entre a regra da Lei Pelé, que autoriza a contratação por até cinco anos, e as previsões da Fifa, que apenas reconhecem, no âmbito internacional, a vigência de contratos de trabalho envolvendo menores de idade por três anos.
Tal situação representava, inclusive, um risco aos clubes, que enfrentavam problemas caso agremiações internacionais buscassem contratar tais jogadores nos últimos anos de contrato.
A Nova Lei Geral do Esporte também traz avanços para o direito das mulheres no esporte.
Com efeito, há a previsão de que apenas poderão ser beneficiadas com repasses de recursos públicos federais as entidades de administração do desporto (confederações e federações) e os clubes que assegurarem a presença mínima de 30% de mulheres nos cargos de direção e que garantirem a isonomia entre atletas homens e mulheres com relação aos valores pagos como premiação.
O Projeto de Lei estabelecia, ainda, que, no caso de dispensa de uma atleta em razão de gravidez ou maternidade, além de se considerar que não houve justa causa, sendo devida a cláusula compensatória à jogadora, seria imposta à agremiação o impedimento de registrar novas atletas por um ano.
Todavia, essa regra interessante foi vetada, por entender que isso, de certa forma, autorizaria a dispensa de uma atleta em razão de gravidez ou maternidade, afastando, ainda, o direito constitucional à estabilidade.
Por fim, houve também um veto à criação da Autoridade Nacional para Prevenção e Combate à Violência e à Discriminação no Esporte, por se entender que a criação de órgãos do Poder Executivo dependeria de proposição do próprio Governo Federal.
Alice Laurindo é graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em que cursa atualmente mestrado na área de processo civil, estudando as intersecções do tema com direito desportivo; atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados; é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; membra da IB|A Académie du Sport; e escreve mensalmente na Máquina do Esporte