Muito já se falou sobre o que aconteceu no último fim de semana no Estádio Mestalla, em Valência, na Espanha. E muito mais ainda precisamos falar. No nosso mercado, então, muito também se falou sobre o papel dos patrocinadores da LaLiga em torno da questão. A coluna desta quarta-feira (24), no entanto, é sobre o papel de todos nós no enfrentamento ao racismo e sobre usarmos o poder transformador do esporte para evoluirmos como sociedade.
Desde os absurdos ataques racistas contra Vinícius Júnior no último fim de semana, os patrocinadores da LaLiga, como Santander, Microsoft, Puma e EA Sports, vêm sendo intensamente questionados nas redes sociais por financiarem uma competição que, na opinião de muitos, não age de maneira eficaz para punir os clubes envolvidos em incidentes de racismo.
O descontentamento de Vini Jr. e muitas das críticas feitas nas redes sociais convergem para uma questão central: os pronunciamentos e declarações de repúdio são suficientes para provocar mudanças reais? Como os patrocinadores e a própria LaLiga podem agir para realmente combater crimes de ódio e racismo?
Desde que chegou à Espanha, cerca de cinco anos atrás, Vini têm sido submetido a um tratamento quase desumano por parte de vários agentes da indústria esportiva, incluindo adversários, torcedores oponentes e mesmo segmentos da imprensa espanhola.
Inicialmente especulado como reforço do Barcelona, o atleta se tornou alvo favorito do escárnio e da maldade de alguns profissionais ainda em seus primeiros jogos pelo Real Madrid B. Tomados pela rivalidade cega, misturada às tensões regionais de um país que se acostumou por séculos a olhar para figuras estrangeiras como inferiores, não foram poucos aqueles que fomentaram publicamente o ódio a um garoto de 18 anos, de pele negra retinta, que chegava ao país para tentar ser e fazer feliz.
Após anos de abuso constante, a situação parece ter chegado finalmente ao seu limite, em virtude da postura gigantesca e extremamente corajosa de enfrentamento adotada por Vini, que escancara a pergunta repetida à exaustão nos últimos dias: qual é a responsabilidade dos patrocinadores envolvidos em relação a situações como esta?
Em tempos de valorização da agenda ESG [governança ambiental, social e corporativa, na sigla em inglês], os patrocínios de uma empresa fazem parte de sua cadeia de valor e, assim, é necessário exigir das marcas o mesmo código de conduta e ética que se requer de qualquer outra parte envolvida em situações de crise tão graves.
Detentor do title sponsor da LaLiga desde 2016, acordo que se encerrará ao fim desta temporada, o banco Santander foi extremamente sucinto em seu comunicado público, dizendo apenas que “rejeita com veemência qualquer forma de preconceito ou racismo”, evitando assim expressar publicamente apoio direto às vitimas, a direta e as indiretas, do que aconteceu no último domingo (21), dentro e fora do Estádio Mestalla.
Também patrocinadora da LaLiga, a Puma declarou posição de forma mais explícita, sem no entanto adotar uma postura mais contundente para exigir mudanças por parte da LaLiga: “Na Puma, não toleramos o racismo, condenamos a discriminação de qualquer forma e nos solidarizamos com Vinícius Júnior e toda a comunidade do futebol”.
Esse episódio destaca como os investimentos das marcas no esporte têm impactos em diferentes áreas. Hoje, temos visto um movimento, o qual considero bastante positivo, que leva as marcas cada vez mais a analisarem a postura e a visão de mundo das propriedades esportivas que patrocinarão, dando muitas vezes um peso ainda maior ao valor intangível de se associarem a entidades com valores semelhantes aos seus, do que apenas à visibilidade que o projeto proporciona.
No entanto, essa imagem positiva que as marcas buscam ao patrocinar propriedades de grande interesse do público pode desmoronar diante de situações como o incidente com Vinícius Júnior. À medida que a LaLiga passa a ser vista como conivente ou omissa com os múltiplos casos de racismo que temos testemunhado, seu valor de mercado diminui, colocando seus parceiros em uma situação de desgaste perante o público.
O fato de Vini ter sido vítima de 11 diferentes episódios de racismo nos últimos anos, números aferidos pelo próprio presidente da LaLiga, Javier Tebas, tentando responsabilizar a vítima pelos ataques ferozes e criminosos, somente reforça a importância de se olhar para o problema não como um incidente isolado, mas sim como um reflexo do comportamento da sociedade e do quão leniente ela é com o racismo.
Apesar de ter anunciado nesta terça-feira (23) atitudes mais severas, multando e punindo o Valencia e revertendo o cartão vermelho recebido pelo jogador durante a partida, tudo isso ocorreu somente em função da pressão pública, incluindo governos e órgãos esportivos, como resposta à desastrosa posição adotada por Tebas e pela LaLiga em um primeiro momento. Para os patrocinadores, o papel deveria ir além da óbvia pressão e do posicionamento público, demandando ações rápidas da LaLiga, sob pena de interromperem seus patrocínios. Além disso, há espaço, hoje, para que cobrem evolução nas regras para transformar qualquer competição em um ambiente de não tolerância ao racismo ou qualquer outro tipo de discriminação.
Como sociedade, não podemos nunca mais aceitar que qualquer ser humano seja tratado como inferior, como infelizmente aceitamos durante séculos. Como agentes deste mercado, cabe a nós defendermos um mundo mais justo e equalitário para todos, por meio daquela que talvez seja a maior ferramenta de transformação social existente: o esporte.
Desejo a Vini que mantenha acesas toda coragem, bravura e resiliência possíveis, para continuar colocando o dedo na ferida com o objetivo de, juntos, enfrentarmos de frente o racismo, até calar de vez essa parcela abjeta da sociedade. Você não está sozinho nessa luta, querido Vini.
Felipe Soalheiro é fundador da SportBiz Consulting e escreve mensalmente na Máquina do Esporte