A última janela de transferências da temporada 2022 do futebol brasileiro encerrou-se no último dia 15. Como de hábito, o período foi marcado pelos clubes nacionais se reforçando com vistas à conclusão do ano. Contudo, essa janela teve como particularidade a contratação de diversos jogadores então vinculados a clubes russos e ucranianos.
O movimento não foi por acaso. No início do ano, já tratávamos por aqui dos efeitos no esporte do conflito entre Rússia e Ucrânia, que, meses depois, infelizmente segue acontecendo. Em função desse contexto, a Fifa promoveu alterações em seus normativos a fim de dar tratamento especial aos contratos em vigor entre atletas estrangeiros e clubes russos ou ucranianos, criando o (temporário) Anexo 7 ao Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores (Fifa Regulations on the Status and Transfer of Players – “Fifa RSTP”).
O Artigos 2 e 3 do Anexo 7 definem a regra geral: um contrato de trabalho de dimensão internacional com um clube ucraniano ou russo pode ser suspenso de forma unilateral até 30 de junho de 2023 pelo jogador ou treinador, desde que ele não tenha chegado a um acordo com o clube até 30 de junho de 2022.
O primeiro ponto a se destacar nessa norma é que, segundo as normas da Fifa, o contrato é de “dimensão internacional” quando as partes contratantes são de nacionalidades diferentes. Por exemplo, um contrato de trabalho entre atleta brasileiro e clube russo é de dimensão internacional. Esse aspecto define não apenas a aplicabilidade do Anexo 7, mas também a própria competência da Fifa para processar e julgar litígios entre jogadores e clubes de modo geral.
O segundo ponto a se considerar diz respeito ao núcleo da norma: a faculdade de o jogador (ou treinador) suspender unilateralmente o contrato de trabalho até 30 de junho de 2023. Cuida-se de hipótese absolutamente excepcional aos preceitos básicos do Fifa RSTP, que, em regra, busca resguardar a necessidade de cumprimento dos contratos e a estabilidade contratual. A razão para tanto é abertamente reconhecida pela Fifa, que em circular às federações nacionais expôs se tratar de uma “consequência inevitável da situação na Ucrânia e da decisão do Conselho da Fifa (…) para proteger o legítimo interesse de jogadores e treinadores estrangeiros empregados em território ucraniano”.
Foi precisamente essa faculdade de rescisão unilateral que ampliou o fluxo de jogadores de clubes russos e ucranianos ao Brasil durante a janela de transferências que ora se encerrou. Afinal, a regra temporária da Fifa permitiu que os jogadores daqueles clubes se transferissem sem que os novos clubes tivessem que arcar com pagamento de valores ao clube ucraniano/russo.
A norma é clara e está em pleno vigor. Contudo, isso não significa que não suscite questionamentos por parte de clubes ucranianos e russos. Notícias dão conta de que o Shakhtar Donetsk, assíduo frequentador da Uefa Champions League e tradicional destino de jovens atletas de destaque no Brasil, ajuizou demanda perante a Corte Arbitral do Esporte cobrando indenização milionária da Fifa pela perda da possibilidade de negociação de atletas, visto que eles podem deixar o clube, ao menos temporariamente, sem custos. E não é só: o mesmo clube teria notificado jogadores brasileiros que decidiram por suspender unilateralmente seus contratos com base no Anexo 7 do Fifa RSTP, e estendido a alegação de irregularidade aos clubes que os contrataram.
Mas, afinal, tem razão o Shakhtar? Estariam os jogadores e os clubes brasileiros cometendo alguma irregularidade? Com a ressalva da necessidade de exame dos detalhes de cada caso para aferir os aspectos jurídicos a ele relacionados, a princípio pode-se dizer que não haveria irregularidade. Ao que tudo indica, os jogadores estão tão somente valendo-se do direito de suspensão unilateral do contrato que a Fifa atualmente lhes atribui. Partindo-se dessa premissa, a contratação desses jogadores por outros clubes é válida e aderente aos regulamentos Fifa.
A conjunção desses fatos aponta para uma aparente estratégia jurídica desenvolvida pelo Shakhtar no sentido de desafiar a legalidade do Anexo 7 do Fifa RSTP, assim defendendo a tese de que não seriam possíveis as suspensões unilaterais dos contratos de trabalho. No entanto, não é simples o caminho para que uma norma da Fifa seja declarada inválida.
Ao longo das décadas, pode-se dizer que o Direito da União Europeia tenha sido um dos principais (senão o principal) moderador da “Lex Sportiva” (sistema jurídico composto pelas normas editadas pelas Federações Internacionais dos diversos esportes, inclusive a Fifa, no caso do futebol). Os motivos para isso são diversos, mas podemos destacar o fato de que as decisões tomadas pelas instituições da União Europeia são aplicáveis de forma transnacional. Assim, diferentemente da decisão de um Tribunal de Justiça nacional, cujos efeitos se limitam ao território daquele país, as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia estendem-se aos diversos estados-membros da União Europeia, muitos dos quais de enorme relevância política e econômica no cenário esportivo mundial.
Nesse sentido, a história revela casos em que normas da “Lex Sportiva” foram consideradas ilegais por conflitarem com princípios resguardados pelo Direito da União Europeia. O “caso Bosman”, que ensejou o fim do passe e o estabelecimento das bases do atual sistema de transferências no futebol, certamente é o mais emblemático deles. Significa dizer que os regulamentos da Fifa não estão alheios à verificação de sua legalidade à luz de normas e princípios externos à “Lex Sportiva”.
Ainda que esse eventualmente possa ser o fundamento adotado pelo Shakhtar como base de sua estratégia jurídica, alguns elementos indicam ser baixo o risco para os jogadores e os clubes que se beneficiaram da prerrogativa concedida pelo Anexo 7 do Fifa RSTP. Em primeiro lugar, porque (a princípio) atuaram em estrita consonância com o disposto na norma em vigor: havendo autorização expressa da Fifa para efetivação da contratação de jogadores advindos da Ucrânia ou da Rússia nesses moldes, é naturalmente remota a probabilidade de serem sancionados pela própria Fifa, até segunda ordem. Além disso, pelo próprio fato de que a Ucrânia não integra a União Europeia, pelo que não se lhe aplicam diretamente as normas do direito comunitário.
Enfim, o Anexo 7 do Fifa RSTP demonstra a tentativa do sistema do futebol organizado de adaptar seus regulamentos à realidade dos fatos e ao contexto do conflito entre Rússia e Ucrânia. Como foi acima exposto, seu teor pode gerar controvérsias sob a ótica dos clubes russos e ucranianos, porém não se pode perder de vista a situação dos atletas e treinadores estrangeiros nesse cenário, sujeitos a viver em zona de conflito caso se mantivesse a obrigatoriedade de cumprirem seus contratos de trabalho durante o período. Esse, acreditamos, é o ponto central da criação do Anexo 7 pela Fifa, e também o aspecto primordial para justificar sua validade. A conferir o que a Corte Arbitral do Esporte e demais órgãos julgadores que venham a ser demandados dirão sobre o tema.
Pedro Mendonça é advogado especializado na área esportiva desde 2010, com vasta experiência na assessoria a diversas entidades esportivas, como comitês, confederações e clubes, além de atletas, e escreve bimestralmente na Máquina do Esporte