O sábado (10) foi marcante para o automobilismo brasileiro, com a confirmação do título de Felipe Drugovich na Fórmula 2. Após décadas, o Brasil voltou a ter um campeão da “categoria de acesso” à Fórmula 1. Naturalmente, o feito de Drugovich reforçou nas últimas semanas a exposição do automobilismo no noticiário esportivo, conquistando em alguma medida a atenção inclusive de pessoas menos afetas a esse esporte e às suas especificidades, o que eventualmente pode causar certo estranhamento em relação a algumas características próprias desse esporte.
Foi nesse contexto – e antes de Drugovich ser anunciado como piloto de testes da Aston Martin – que se registrou um diálogo com a seguinte pergunta: “se o Brasileiro ganhar, ele se classifica para a Fórmula 1 no próximo ano?”. Por mais curioso que possa soar àqueles mais habituados às nuances do automobilismo, na verdade o questionamento traz à tona como os esportes podem se organizar de formas diversas, e como determinados conceitos próprios do futebol são apreendidos pelo público como um padrão universal.
A lógica por trás da pergunta é bastante clara: se a Fórmula 2 é tratada como uma “categoria de acesso” à Fórmula 1, aos olhos do leigo o título do campeonato deveria assegurar uma vaga ao piloto na principal categoria do automobilismo mundial. O racional remonta a dois princípios adotados no futebol organizado conforme é classicamente conhecido.
O primeiro deles diz respeito à promoção e ao rebaixamento de clubes entre diferentes divisões. Por exemplo, os quatro primeiros colocados da Série B do Campeonato Brasileiro 2022 disputarão a Série A do Campeonato Brasileiro 2023. Embora se trate de um princípio consagrado pela Lex Sportiva e adotado na maioria dos campeonatos nacionais do futebol organizado ao redor do mundo, no Brasil ele se estende à legislação estatal: o artigo 10, § 3º, do Estatuto do Torcedor (Lei nº 10.761/2003) dispõe que em “campeonatos ou torneios regulares com mais de uma divisão, serão observados o princípio do acesso e do descenso”.
O segundo princípio diz respeito ao mérito esportivo, e se materializa a partir da definição de critérios de classificação de equipes para determinadas competições. É o que acontece, por exemplo, na Série D do Campeonato Brasileiro; o Regulamento Específico da competição prevê que a definição dos participantes se dá a partir da classificação obtida no campeonato estadual. O art. 10 do Estatuto do Torcedor também resguarda esse princípio, ao estipular ser direito do torcedor “que a participação das entidades de prática desportiva em competições (…) seja exclusivamente em virtude de critério técnico”, sendo a “colocação obtida em competição anterior” o critério técnico primordial.
As normas do Estatuto do Torcedor acima mencionadas não se aplicam diretamente à hipótese. Dentre outras razões de ordem jurídica, porque os campeonatos de Fórmula 2 e Fórmula 1 são de nível internacional, organizados pela Federação Internacional de Automobilismo (FIA) e promovidos por empresas estrangeiras (a Fórmula 2, inclusive, sem nenhuma etapa disputada em território brasileiro). Mas, ainda que não fosse esse o contexto, fato é que a forma pela qual o automobilismo se organiza não comporta a aplicação direta desses preceitos.
A Fórmula 2 não é uma “segunda divisão” da Fórmula 1 nem tecnicamente uma competição classificatória. Um piloto pode participar do campeonato mundial de Fórmula 1 sem jamais ter sequer se sentado em um carro de Fórmula 2, como é o caso, por exemplo, do atual campeão mundial Max Verstappen. A referência à competição como uma “categoria de acesso” à Fórmula 1 se dá mais sob uma perspectiva comercial e esportiva não jurídica, como um reconhecimento daquele campeonato como um celeiro de formação de jovens pilotos com potencial para competir na principal categoria do automobilismo.
A essa altura, o leitor deve estar se questionando: então um título da Fórmula 2 não tem nenhum impacto jurídico no acesso de um piloto à Fórmula 1? Há, sim, um impacto à luz do direito desportivo. Porém, ele se distingue por completo dos conceitos de promoção e rebaixamento.
A participação de um piloto nos principais campeonatos de automobilismo em nível mundial se condiciona à obtenção de uma categoria específica de licença. Em outras palavras, a obtenção de determinada licença é, no automobilismo, um critério de elegibilidade de atletas, provavelmente o principal deles. Pode-se dizer que esse sistema de outorga de licenças tem origem na própria noção do automobilismo como esporte de risco, em que a pilotagem de carros mais velozes e robustos requer a comprovação de níveis mais altos de idade, experiência e/ou qualificação técnica.
A licença mais cobiçada é a superlicença, exigida dos pilotos que pretendam participar do campeonato mundial de Fórmula 1. Dentre os diversos requisitos estabelecidos pela Federação Internacional de Automobilismo (FIA) para obtenção da superlicença (por exemplo, ter pelo menos 18 anos de idade), exige-se em regra que o piloto tenha somado ao menos 40 pontos nas últimas três temporadas, conforme tabela constante do Anexo L ao Código Desportivo Internacional da FIA. Destaca-se abaixo a parte inicial da aludida tabela, que permite a visualização do sistema de pontuação:
A tabela demonstra que o campeão da Fórmula 2 (assim como o segundo e o terceiro colocados) alcança diretamente a pontuação mínima necessária à obtenção da superlicença. A posição da Fórmula 2 na tabela e o fato de ser a categoria que mais confere pontos aos pilotos reforça a noção de “categoria de acesso” à Fórmula 1. Porém, a imagem acima também permite constatar a razão pela qual não é uma etapa obrigatória para se chegar à Fórmula 1: há diversas combinações possíveis pelas quais um piloto pode somar 40 pontos em três temporadas, além do próprio título da Fórmula Indy, que garante essa pontuação de forma integral. E vale dizer que a tabela ainda contempla mais 20 competições além daquelas que constam da imagem ora destacada (embora nenhuma outorgue mais do que 18 pontos ao campeão).
Aí está o impacto do título da Fórmula 2 para o acesso à Fórmula 1, à luz dos regulamentos esportivos: o campeão da Fórmula 2 se torna elegível para participar do campeonato de Fórmula 1. Porém, essa elegibilidade não se confunde com garantia de vaga, o que depende de fatores diversos (que não necessariamente são puramente de mérito esportivo, podendo ser financeiros).
Enfim, vê-se que o automobilismo possui especificidades que o distinguem de outros esportes. Sua forma de organização é diferente daquela classicamente adotada pelo futebol, com a qual o público brasileiro está mais acostumado. Por isso, o título de Drugovich não representou tecnicamente uma garantia de que ele estaria na Fórmula 1 na próxima temporada. Contudo, isso em nada diminui a importância do seu feito nem muito menos a torcida pelo seu sucesso como piloto de testes da Aston Martin e, sobretudo, pela conquista de uma vaga como piloto titular em um futuro breve.
Pedro Mendonça é advogado especializado na área esportiva desde 2010, com vasta experiência na assessoria a diversas entidades esportivas, como comitês, confederações e clubes, além de atletas, e escreve mensalmente na Máquina do Esporte