Recentemente, casos repugnantes de brutalidade no futebol reacenderam o discurso do combate à violência. Confesso que ainda me impressiono e me incomodo com a quantidade de pessoas importantes do nosso esporte que seguem afirmando que a violência do futebol brasileiro é um problema da cultura do povo e da falta de educação.
Sempre que ouço essas desculpas, logo me vem à mente a virada do futebol inglês, que era um completo caos nos anos 1980 e se tornou a maior referência de gestão de segurança em eventos esportivos. Com estádios sempre cheios, a Premier League se transformou no principal campeonato de futebol do mundo.
Afirmar que a diferença entre o ambiente familiar encontrado nos estádios ingleses e a violência do nosso futebol é simplesmente uma questão de cultura e educação, além de ser uma justificativa rasa e preconceituosa, é uma tremenda ignorância dos fatos.
Nunca podemos esquecer que nos anos 1980 a violência e a falta de organização do futebol e dos estádios ingleses eram muito piores que o atual momento vivido no Brasil. O hooliganismo estava em alta, espalhando a sua onda de bestialidade em qualquer lugar que houvesse uma partida de futebol de um clube inglês.
A década foi marcada por brutalidades e tragédias no futebol do Reino Unido, quando as confusões em estádios precários eram extremamente comuns. Em maio de 1985, morreram 39 pessoas, na maioria torcedores italianos da Juventus, esmagados contra os muros e grades no Estádio de Heysel, na Bélgica, após uma confusão provocada pelos torcedores ingleses do Liverpool. O episódio sombrio, somado aos recorrentes casos de violência dos torcedores ingleses, levou a UEFA a banir todos os clubes do país de todas as competições europeias por cinco anos.
Poucos dias depois da Tragédia de Heysel, 56 pessoas foram mortas devido a um incêndio no Estádio Valley Parade, em Bradford, na Inglaterra. A investigação mostrou que o incêndio começou por causa de um cigarro jogado no lixo acumulado embaixo das arquibancadas de madeira malconservadas. Os extintores de incêndio tinham sido recolhidos antes do jogo para evitar vandalismo, e os portões de saída estavam trancados com cadeados para impedir a invasão de torcedores.
Após o banimento imposto pela UEFA, iniciou-se uma perseguição aos hoolingans, mas isso não impediu mais uma tragédia. Em 1989, a Inglaterra foi palco de uma das maiores catástrofes da história do futebol: 96 pessoas morreram esmagadas por conta da superlotação e de falhas na operação da polícia na entrada de um dos setores destinados à torcida do Liverpool no Estádio de Hillsborough.
Então, como a Inglaterra saiu de um cenário totalmente caótico e devastador para se tornar referência em segurança e organização?
Conversando com gestores importantes de estádios de futebol no Reino Unido, percebi que eles foram unânimes em afirmar que essa transformação foi baseada nos seguintes pilares: melhoria no nível de serviço oferecido ao torcedor; gestão de segurança mais inteligente; e mudança completa na cultura do futebol local.
Os estádios, que antes mais pareciam castelos medievais, palco de batalhas entre torcidas rivais, equipados com fossos profundos, grades pontiagudas, arames farpados, lugares de pé, banheiros imundos, falta de opções de alimentos e bebidas, confusão nas entradas e tratamento degradante dos torcedores, foram substituídos por modernas praças esportivas, oferecendo muito mais conforto, entretenimento e segurança.
A atmosfera bélica dos estádios com armamentos pesados, cachorros, policiais com escudos e seguranças grosseiros também saiu de cena para dar lugar a “stewards“ bem treinados e educados, câmeras de segurança, maior interação entre agentes privados e forças policiais, adoção de banco de dados de baderneiros e total união entre as forças de segurança do país.
Por último, mas não menos importante, foi feita uma completa mudança cultural do futebol local. Os clubes se aproximaram dos seus torcedores para entender suas necessidades e anseios, comportamentos antes toleráveis como assédio, machismo e homofobia passaram a ser coibidos e até cânticos muito ofensivos deixaram de ser aceitos nas arquibancadas. Os próprios comportamentos de simulação de faltas e agressividade excessiva dos jogadores em campo passaram a ser criticados pelos torcedores nas arquibancadas.
Entendeu-se que, para atrair novos torcedores, como famílias, e mudar o comportamento dos antigos era necessário criar um ambiente melhor, mais relaxado, seguro e confortável. Dessa maneira, as pessoas passariam a frequentar os estádios para se divertir, relaxar e consumir com suas famílias, e não mais para arrumar confusão.
Com muito trabalho, conhecimento e união de todos, a Inglaterra já apresentou para o mundo um caminho para extirpar a violência do futebol. Será que o futebol brasileiro está preparado para seguir os bons exemplos?
Romulo Macedo é sócio-fundador da Fan Experience 360 e escreve mensalmente na Máquina do Esporte