Após cerca de dois anos da lei que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol (SAF), as mudanças no futebol brasileiro são inegáveis. Agremiações tradicionais se transformaram, de forma total ou parcial, em SAFs, inclusive mediante investimento estrangeiro.
Além disso, outros clubes (até aqueles estruturados como associação) formularam pedido de recuperação judicial ou de pagamento de suas dívidas mediante o Regime Centralizado de Execuções.
No entanto, percebe-se que, como esperado, o potencial do caminho aberto pela Lei da SAF ainda não foi totalmente explorado. Na realidade, ainda há mais que pode ser feito quanto às formas disponíveis de obtenção de receitas para os clubes de futebol, sobretudo aqueles que optem por se organizar de forma empresarial.
Justamente nesse contexto, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) editou recentemente o parecer de orientação CVM nº 41/2023. O intuito do documento, como reconhecido pela própria CVM, é “(…) orientar investidores e participantes do mercado sobre a utilização de instrumentos viabilizadores do acesso ao mercado de capitais pela SAF”.
Apesar de não ser o objetivo desta coluna entrar nas particularidades do mercado de capitais, convém destacar a utilidade da orientação CVM 41/2023, bem como mencionar alguns aspectos do seu conteúdo.
Logo de início, a orientação CVM 41/2023 já ressalta uma particularidade que existe em relação às SAFs. Afinal, a despeito da proibição que há para companhias abertas em geral, a própria Lei da SAF prevê a possibilidade de haver mais de uma classe de ação ordinária, eis que a agremiação que deu origem à SAF deverá deter ações ordinárias da Classe A.
Além disso, a CVM entendeu que as ações da Classe A não poderão ser alienadas a terceiros, de modo que não poderão ser negociadas na bolsa de valores. Trata-se, portanto, de um direito previsto na Lei da SAF expressamente para o clube que deu origem à SAF, provavelmente como forma de garantir que este não esteja totalmente dissociado da SAF em questão.
Além disso, a CVM destaca que a Lei da SAF previu a emissão de valor mobiliário particular, denominado “debênture-fut”. Trata-se de uma espécie de debênture, que só poderá ser emitido por uma SAF.
É digno de nota o fato de que, segundo a CVM, para emitir o referido valor mobiliário, a SAF deverá observar, além das disposições específicas, as regras gerais dessa espécie de valor mobiliário. É o caso, por exemplo, das disposições acerca da possibilidade de recompra de debênture pela própria empresa que a emitiu, já regulamentada em termos genéricos pela Resolução CVM 77.
No entanto, além da “debênture-fut”, a CVM concluiu que as SAFs podem emitir outras espécies de valor mobiliário, contanto que observem os requisitos estabelecidos pela própria CVM e/ou pela Lei das Sociedades por Ações.
Essa sinalização da CVM é importante, pois o tema podia gerar dúvidas. Afinal, na redação original da Lei da SAF, havia a previsão de que as SAFs poderiam emitir qualquer valor mobiliário, o que foi vetado pelo então presidente.
Entendeu a CVM, porém, que o veto apenas teve como intuito ressaltar que, para a emissão dos demais valores mobiliários, a SAF precisaria observar as regras e condições gerais.
Nesse sentido, a CVM orientou que, desde a constituição da SAF, já se observe as normas contábeis aplicáveis ao mercado de valores mobiliários, para facilitar a emissão desses títulos futuramente.
Outra recomendação importante da CVM é que a SAF que pretenda negociar valores mobiliários na bolsa de valores formule medidas que garantam a observância das regras de governança corporativa previstas na Lei da SAF.
Com efeito, há, nessa lei, a vedação de que o acionista controlador de uma SAF possua participação, direta ou indireta, em outra SAF. Será necessário que se adote, então, medidas para garantir que isso não ocorra por meio da aquisição de valores mobiliários.
A Lei da SAF ainda prevê que o acionista que detiver, ao menos, 10% do capital votante de uma SAF não poderá ter direito a voz ou voto em assembleias gerais de outra SAF, tampouco participar de sua administração. A CVM ressalta, então, que deverão ser tomadas cautelas adicionais para que isso tampouco ocorra mediante um acordo de acionistas.
Também é importante mencionar que as SAFs precisarão tomar cuidado com as informações que serão divulgadas para as ofertas na bolsa de valores. Afinal, os valores mobiliários ofertados pela SAF poderão, ao mesmo tempo, ser adquiridos por investidores já acostumados com o mercado de capitais e torcedores possivelmente influenciados pelo carinho com o time do coração.
Assim, recomenda-se que haja preocupação especial quanto à linguagem utilizada, assim como com a menção aos fatores de risco das ofertas. Em outras palavras, recomenda-se que a SAF oriente seus torcedores acerca das peculiaridades do mercado de capitais e da incerteza intrínseca à negociação e aquisição de valores mobiliários.
Nesse contexto, a CVM destaca o instituto do “suitability”, que é o dever que todos os que atuam na cadeia de distribuição de valores mobiliários possuem de “(…) se certificar que o produto oferecido é adequado ao perfil do investidor”. As SAFs deverão, portanto, se certificar de que os valores mobiliários por elas ofertadas se adequem aos torcedores interessados.
Fato é que a exploração do mercado de capitais pelas SAFs poderá trazer novas possibilidades ao mercado do futebol brasileiro, permitindo a obtenção de novas receitas, a reestruturação de dívidas e o financiamento de novos projetos. Fica evidente, portanto, a necessidade de conhecer e estudar a orientação CVM 41/2023, que certamente guiará esses próximos passos.
Alice Laurindo é graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em que cursa atualmente mestrado na área de processo civil, estudando as intersecções do tema com direito desportivo; atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados; é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; membra da IB|A Académie du Sport; e escreve mensalmente na Máquina do Esporte