Como já escrevi outras vezes neste espaço, uma das principais características da blockchain é o fato de ser uma rede pública e imutável, ou seja, não só é possível usar a tecnologia para fazer registros que não podem ser modificados, como tais registros são transparentes para que qualquer pessoa possa conferir. Por conta disso, a blockchain tem sido cada vez mais usada, por exemplo, para criar “currículos on-chain”, atestando o histórico de uma pessoa em relação aos diplomas e certificações que conquistou, feitos que alcançou, atividades que participou e projetos que contribuiu. Em uma época na qual estamos rodeados por perfis fake ou por perfis verdadeiros cheios de informações falsas sobre si e outrem, ter uma tecnologia como esta é de grande valia.
Dentro deste contexto, diversas iniciativas têm surgido para auxiliar na construção destes “currículos”: Proof of Attendance, Proof of Meeting, Proof of Visiting e por aí vai. São tantas as possibilidades que costumamos chamar no meio da Web3 de “Proof of X”. A mais conhecida delas é o Poap (Proof of Attendance ou Comprovante de Presença, em português). Trata-se de um protocolo que emite NFTs como certificados de participação em eventos.
Algumas organizações esportivas já fizeram uso dos Poaps. Em sua edição de 2021, por exemplo, o US Open permitiu que pessoas que foram a alguma partida pudessem resgatar seus certificados. Bastava colocar o e-mail de compra do ingresso que o torneio identificava o comparecimento ou não ao local, e o NFT ficava pronto para ser retirado. A NBA e a NFL também já ofereceram Poaps para fãs que foram a jogos. Os comprovantes de presença podem ser ainda os próprios ingressos, se estes forem tokens (já escrevi um artigo explicando em detalhes os benefícios do uso da blockchain para essa indústria).
O Proof of Meeting, ou Comprovante de Encontro, tem sido usado especialmente em conferências de Web3, em substituição aos cartões de visita. Ao invés de entregar aquele cartão sem graça (que geralmente vai para o lixo no pós-evento), cria-se um NFT com uma imagem atrativa vinculada às informações de contato. Isso pode se dar de forma mais simples, com um QR Code, ou com uma tecnologia mais robusta, como um chip NFC.
É possível até gamificar o Proof of Meeting, criando competições entre os participantes. A marca 9dcc, por exemplo, faz isso. Suas camisas vêm com chips NFC que emitem certificados de encontro quando escaneados. Durante o NFT Paris e o ETH Denver, dois eventos relevantes da indústria, aqueles que mais “conheceram” pessoas foram premiados com itens exclusivos.
Já o Proof of Visiting, ou Comprovante de Visita, como o nome já diz, tem começado a ser aplicado em pontos turísticos. Recentemente, uma deputada do Congresso da China sugeriu o uso de tokens não fungíveis como forma de estimular o turismo no país. A ideia seria uma versão digital dos tradicionais selos ou cartões-postais que costumam ser vendidos nestes locais.
Outras aplicações óbvias envolvem instituições de ensino e até o mercado de trabalho. A emissão de diplomas, ao ser feita on-chain, eliminaria o problema de certificações falsas. Já as comprovações de experiências profissionais, inclusive com certificados representando feitos relevantes, ajudaria em processos seletivos. Hoje, qualquer um pode mentir sobre formações, inventar experiências inexistentes ou inflar realizações no LinkedIn. Se for possível verificar a origem destas informações, todos estes problemas acabarão.
É preciso, no entanto, fazer uma observação importante: diferentemente de comprovantes de presença, de encontro ou visita, que não são tão relevantes assim (e, por conta disso, podem ser transferidos ou comercializados entre as pessoas), diplomas e certificados de experiência profissional devem, necessariamente, ser emitidos como intransferíveis, caso contrário perde-se o sentido de tê-los on-chain.
Proof of X e o esporte
Você deve estar pensando: qual é a relevância disso para a indústria esportiva? No caso dos Poaps, já dei alguns exemplos aplicados no meio. Porém, minha visão vai muito além. Todas as ações de um torcedor/fã relacionadas a uma organização esportiva, sejam elas on-line ou off-line, deveriam render certificados on-chain, como tokens não fungíveis. Tais certificados, além de serem colecionáveis digitais, serviriam como estímulo para que determinadas atividades sejam realizadas, caso sejam atrelados a benefícios e vantagens para quem os conquista.
Mensalidade de sócio-torcedor em dia; ingressos adquiridos; check-in, seja presencial ou on-line, em cada jogo; compra de produtos oficiais; resposta a pesquisas ou quizzes no aplicativo; ato de completar o perfil com informações pessoais nas plataformas do clube; visita a pontos turísticos históricos da organização; visita a lojas físicas de parceiros; compra de produtos de patrocinadores; participação em eventos do clube e/ou de parceiros; encontros com ídolos do passado; encontros com outros sócios-torcedores; ato de assistir a conteúdos completos em áudio e vídeo; fato de fazer parte da comunidade oficial da organização; interação com os perfis oficiais nas redes sociais…
Estas são apenas algumas atividades que poderiam render NFTs. A lista pode ser bem maior.
Imagine ainda que um clube crie “missões” e que cada missão cumprida gere um certificado vinculado a um benefício. Estas missões poderiam envolver apenas um tipo de ação (ir a 10 jogos consecutivos em casa, por exemplo) ou combinar diversas ações. Elas também teriam níveis de dificuldade distintos, de acordo com o esforço de tempo e dinheiro que precisariam ser empregados para serem completadas.
Exemplos de missões simples seriam: criar um perfil completo nas plataformas do clube; tornar-se sócio-torcedor; seguir os perfis oficiais da organização em todas as redes sociais; ou fazer o check-in no aplicativo em todos os jogos durante um mês. Uma missão como esta poderia render um NFT vinculado a um cupom de desconto para compra de uma camisa oficial na loja oficial do clube.
Já exemplos de missões complexas seriam: estar com o plano mais caro de sócio-torcedor em dia durante 12 meses; ir a 20 ou mais jogos presencialmente em uma temporada; gastar mais de R$ 1.000 em produtos oficiais no e-commerce do clube em um ano; ou responder a todas as enquetes no aplicativo no ano. Uma missão assim poderia dar o direito ao resgate de um NFT vinculado a uma visita ao Centro de Treinamento, com direito a conhecer os jogadores pessoalmente.
O mais legal, no entanto, é que tanto os comprovantes de atividades quanto os tokens atrelados a benefícios, por estarem registrados em uma blockchain, são ativos comercializáveis. Ou seja, digamos que, para ir a um evento exclusivo, eu precise ter 10 Poaps de partidas do clube no ano, mas só tenha oito. Eu poderia comprar estes dois certificados que me restam de quem quiser vendê-los e resgatar meu ingresso. Ou se, ao cumprir uma missão complexa, ganhar o direito de bater uma bola com os jogadores, mas eventualmente não puder (ou mesmo não quiser) ir, poderia vender este direito adquirido para quem não tenha interesse em despender tempo e esforço para conquistá-lo, mas que esteja disposto a pagar por ele. Todo mundo sai feliz, inclusive o clube, que ganha royalties sobre estas transações no mercado secundário.
Os certificados também podem servir para criar e comprovar o histórico de itens. Quem nunca teve uma “camisa da sorte” do time de coração, que sempre usou para ir a jogos e depois ficou com histórias para contar? Imagine que, ao colocar um chip NFC em uma camisa, a pessoa possa escaneá-la e fazer um check-in presencial no estádio (usando o GPS do smartphone) para ter um Poap daquela partida vinculado a ela. Quanto mais jogos, mais história e mais valiosa a camisa, tanto em termos sentimentais quanto até como item de colecionador. Quando lançamos o Manto da Massa inteligente no Atlético-MG, em 2021, tínhamos o objetivo de evoluí-la para permitir exatamente isso nos anos seguintes.
São inúmeras possibilidades. O principal, entretanto, é entender que, cada vez mais, as pessoas querem sentir que pertencem a algo maior, ter tratamentos diferentes, customizados e saber que suas atitudes estão sendo notadas e recompensadas. Os currículos on-chain podem ser uma arma poderosa não só para oferecer isso, como para estimular o consumo e a participação dos torcedores, além de permitir um conhecimento muito mais profundo e granular de cada um deles. Vale a pena estudar o assunto e incluí-lo em sua estratégia de Web3.
Felipe Ribbe é ex-diretor geral da Socios.com no Brasil e ex-head de inovação do Atlético-MG. Atualmente, é consultor em inovação no esporte, orientador de startups de Web3 e escreve mensalmente na Máquina do Esporte