Certa vez, um alto dirigente do futebol mundial me disse: “Poucas pessoas sabem o poder que o futebol tem”. Ele era um senhor experiente, que tinha passado a metade de sua vida dentro do futebol e já tinha visto de perto, por diversas vezes, a força do esporte mais amado do planeta. Eu ainda estava no início da minha carreira no esporte, mas nunca mais esqueci dessa frase.
Passado muitos anos, posso dizer que aquele senhor tinha realmente razão. O quanto nós torcedores somos impactados pelo futebol no nosso dia a dia é muito difícil de mensurar. O tamanho da nossa doação emocional e de tempo também é incalculável. E a impressão que tenho é que nem os próprios clubes se deram conta do seu poder.
Com tamanho poder e tamanha capacidade de influência, será que clubes e entidades esportivas não poderiam impactar mais positivamente na sociedade? Ou até mesmo trabalhar por uma comunidade melhor? A resposta é sim: clubes, federações e ligas de todo o planeta deveriam trabalhar por um ambiente do futebol e também uma sociedade melhores.
Melhorar a comunidade em que está inserido deveria ser um valor básico de todo e qualquer clube, assim como de qualquer liga ou federação de futebol. Aliás, torcedor, você sabe quais são os valores e a missão do seu clube de coração?
Ganhar jogos e campeonatos é muito pouco para entidades com tamanha capacidade de persuasão e influência na vida de milhões de pessoas. Infelizmente, muitos clubes se afastaram dos objetivos de sua fundação para se tornarem entidades que pensam apenas em ser melhor que seus rivais dentro das quatro linhas.
Se analisarmos os estatutos de grandes clubes, iremos encontrar palavras e expressões como: promoção de atividades cívicas, educação, estímulo à prática do esporte, promoção à prática da educação física, difusão da moral, inclusão social, etc. Mas tudo isso parece que não significa mais nada nem para o torcedor nem para o próprio clube.
O ambiente do futebol está tóxico, os estádios são usados como escudos para comportamentos e atitudes deploráveis, como uma permissividade e uma normalização assustadoras do absurdo. Em qual outro lugar é normal mostrar o dedo do meio para uma pessoa? Onde é aceitável uma criança de dez anos gritar os piores palavrões? Em que lugar se pode ofender a mãe de uma pessoa sem que ninguém se importe? Em qual outra situação ninguém se espantaria com milhares de pessoas insultando uma única pessoa?
Sim, o futebol sempre foi assim. As arquibancadas sempre foram um lugar “livre” para xingarmos os adversários, insultarmos os jogadores rivais, enfrentarmos a honra de juízes, proferirmos os piores palavrões a plenos pulmões, etc. Mas será que esse comportamento ainda é aceitável no ano de 2023? A sociedade está em constante evolução, e atitudes e comportamentos que eram “aceitáveis” no passado, hoje, além de reprováveis, se tornaram crime.
O pior é que essa atmosfera danosa está servindo de espaço para que transgressões sejam cometidas sem grandes punições. Racismo, homofobia, assédio e agressão, entre outros delitos, são comumente relatados em partidas de futebol por todo o planeta. Isso parece ser um caminho sem volta com tamanha permissividade de todos os envolvidos no esporte.
Campanhas sociais pontuais são legítimas e válidas, mas não têm o poder transformador de um valor genuíno de uma entidade. Combate a qualquer tipo de discriminação, intolerâncias e violência tem que ser um valor intrínseco, inegociável e fazer parte de todo e qualquer pequeno movimento no dia a dia de um clube, liga ou federação.
Não tem cabimento, por exemplo, todos os clubes fazerem manifestos de combate à homofobia e continuarem não usando a camisa 24. Ou fazer campanhas contra a violência e tentar minimizar a situação quando a sua própria torcida apedreja o ônibus rival, entre muitos outros exemplos que vão contra o que o clube prega, pelo menos, em suas redes sociais. A impressão que passa é a pior possível. Quando o valor é genuíno, as práticas devem estar presentes no dia a dia da cultura da entidade e ser refletidas até nas mínimas atitudes diárias. Se melhorar a sociedade e combater qualquer tipo de discriminação fossem parte do DNA dos clubes, eles mesmos deveriam propor punições mais severas e serem os primeiros a cortar na própria carne para corrigir uma infração cometida por seus torcedores, dirigentes e/ou atletas.
Clubes, ligas e federações precisam urgentemente desempenhar o papel relevante que nós, torcedores, outorgamos a eles e estabelecer valores fortes que vão muito além de ganhar os jogos e ser campeões. O futebol tem o poder de melhorar a si mesmo e toda a sociedade. Já passou da hora de começar a usar essa força de maneira genuína.
Romulo Macedo é chefe de operações de mídia e serviços de notícias dos Jogos Pan-Americanos e Parapan-Americanos de Santiago 2023 e escreve mensalmente na Máquina do Esporte