Fez história, de fato. Em 2023, mais um tenista brasileiro está marcando as quadras de Roland Garros. Sim, poderia ser a história de um novo ídolo exatamente nas mesmas quadras em que o gigante Gustavo Kuerten se consagrou, mas espero que não seja. Não estou aqui julgando a sua destreza profissional para ganhar do russo Daniil Medvedev, 2º colocado no ranking da ATP, o que certamente é um feito, mas ficarei decepcionada, e acredito que diversos profissionais que estão lendo esta coluna também, se esse grande ato esportivo transformar Thiago Seyboth Wild em ídolo.
O que se espera de um esportista? Não aquele jogador de final de semana, mas sim de alguém que abraçou a ideia de viver em busca da autossuperação, da competitividade, da profissionalização e por que não dizer da ética que o dia a dia de qualquer esporte que seja nos ensina. É complexo responder. Há quem falará pelo viés das medalhas e troféus, e há quem divagará sobre os valores, o foco e a rotina, por exemplo.
E o que se espera de um ídolo? Integridade, vitórias e história inspiradora com certeza são alguns dos pontos que podem ser citados.
Mas vamos voltar a Roland Garros e refletir sobre como podemos idolatrar um atleta que responde um processo criminal por violência doméstica e psicológica contra a ex-namorada. Reforço: é incrível a superação dentro das quadras, mas lamentável tudo que ocorreu fora dela.
Quando o assunto é violência, principalmente contra mulheres, muitas vezes percebo a dificuldade que existe para os profissionais se posicionarem. Não é tão complexo quanto parece: falta coragem e transformação de comportamento. Amenizar a situação de violência cometida por um atleta, seja ela física, psicológica ou até financeira, apenas pelo fato de que ele elevou o nome do país a nível internacional, ou que tal pessoa trouxe muitas alegrias e títulos, é um ato machista.
Quer um exemplo recente? Daniel Alves. A história completou cinco meses, o jogador está preso enquanto aguarda julgamento, e a cada semana as informações que são divulgadas pela mídia tornam o caso mais complexo para o atleta. Mesmo assim, Daniel ainda possui 34 milhões de seguidores, apenas citando o Instagram.
Outro caso? Robinho. O ex-atacante foi condenado por violência sexual (termo rebuscado para estupro). Sua sentença de mais de nove anos não foi cumprida na Itália, assim como também não foi paga a multa para a vítima. O ex-jogador viajou para o Brasil, e aqui não há extradição. Seu Instagram possui mais de 2 milhões de seguidores.
Mais um caso? Jean, goleiro que atuou por Bahia e São Paulo, que, em dezembro de 2019, agrediu fisicamente a sua então esposa durante as férias da família em Orlando, nos EUA. Quando retornou ao Brasil, o jogador teve seu contrato suspenso pelo time paulista. Em um mundo ideal, ele responderia processo, pagaria sua pena e sairia dos holofotes, porém a realidade é outra. Em fevereiro de 2020, o Atlético-GO assinou contrato com o jogador que, atualmente, atua pelo Cerro Porteño, do Paraguai. Seu Instagram possui mais de 546 mil seguidores.
Por fim, não posso deixar de citar Bruno Fernandes, mais conhecido como goleiro Bruno, acusado do assassinato de Eliza Samudio em 2013. Bruno foi condenado a 23 anos e um mês por homicídio, ocultação de cadáver, sequestro e cárcere privado. Ele foi para o regime semiaberto em 2018 e está em liberdade condicional desde janeiro de 2023. Neste ano, tentou atuar em um time de futebol amador de São Paulo, o Orion, mas foi impedido devido às condenações. O Orion foi o sétimo clube de Bruno após a prisão. Anteriormente, ele tentou retomar a carreira por Boa Esporte, Poços de Caldas, Rio Branco-AC, Araguacema-TO, Atlético Carioca e Búzios. Há duas semanas, o goleiro publicou em seu Instagram uma foto atuando pelo Atlético Carioca.
Em resumo, apesar de todos os crimes pelos quais o jogador foi condenado, sete diretorias de clubes de futebol foram favoráveis à sua contratação. Camisas foram vendidas com seu nome, e há pessoas o idolatrando. O Instagram? Pasmem: são 108 mil seguidores e, em todas as publicações, há pessoas, na maioria homens, dizendo que querem fotos e que acreditam na inocência do goleiro. Se o seu estômago não embrulha com essas histórias, está mais do que na hora de rever os seus conceitos.
Por que nós, profissionais ativos do esporte, aquele tal segmento que inspirou tantas histórias, que transformou a vida de tantas pessoas e que movimenta tanto dinheiro, não tomamos uma posição séria quanto a esses casos de violência que nos rodeiam? Que tal começarmos a nos posicionar com frases como “não vou trabalhar com um assassino” ou “me recuso a sequer estar no mesmo ambiente que um estuprador”? Por que possibilitamos que negócios sejam acordados, apesar do show de horrores que muitos atletas, empresários e executivos causam a tantas mulheres?
Se há o poder de transformação no esporte (e obviamente nos negócios que o cercam), por que muitos contratos não possuem cláusula de responsabilidade de imagem e de comportamento? Precisamos, sim, ser rígidos quando o assunto é violência. Não podemos mais atuar com olhos fechados e bocas tapadas.
Quantos Brunos e Robinhos aceitaremos ao nosso redor? A que preço vale o troféu conquistado, se a vergonha e o nojo o acompanham? Qual é o legado que esses ditos atletas deixam para nossos filhos, sobrinhos e netos?
A responsabilidade da formação de novos ídolos está exatamente nas nossas mãos, e cabe a nós expurgar e banir essa influência na nossa comunidade. Não se posicionar, ou até mesmo acusar as vítimas de violência, é um ato inadequado, ultrapassado e vergonhoso.
Ou tomamos as atitudes para mudar o presente e o futuro do esporte, ou chegará o momento em que tais atos e o poder de influência destas pessoas atingirão diretamente os nossos estômagos, tal qual um soco direto de um boxeador, e não adiantará mais se lá dentro existia uma repulsa silenciada. O esporte precisa da ação de quem de fato é profissional, e os negócios precisam ser feitos muito além apenas da execução do esporte.
Mariana Souza é especialista em marketing digital e analista de marketing na Máquina do Esporte