A Fifa e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) estabelecem regras para a representação e o agenciamento de atletas menores de idade, com o objetivo de proteger jovens talentos contra explorações indevidas e garantir um ambiente esportivo ético e seguro para o desenvolvimento esportivo e humano.
A Fifa regula a atuação de intermediários e agentes de jogadores por meio do Regulamento sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores (RETJ) e do Regulamento Nacional de Intermediários, que está parcialmente suspenso. De acordo com essas normas, por exemplo, no artigo 19 do RETJ, há restrições para transferências internacionais de menores de idade, permitindo-as apenas em casos excepcionais, como quando os pais do jogador se mudam para outro país por razões não relacionadas ao futebol. Além disso, nenhum intermediário pode receber qualquer tipo de remuneração por intermediar a assinatura de contrato de um jogador menor de idade.
A Fifa justifica que, com isso, busca evitar situações que possam expor atletas jovens a exploração financeira ou condutas antiéticas no futebol.
No Brasil, a CBF regulamenta o agenciamento de atletas por meio do Regulamento Nacional de Agentes de Futebol (RNAF), publicado em 2023. Segundo esse regulamento, a prestação de serviços a um atleta menor de idade e/ou seu responsável legal só é permitida a partir de seis meses antes da data em que o atleta completar a idade mínima permitida para assinar um contrato profissional com clube de futebol (no Brasil, essa idade é 16 anos). Ou seja, a representação formal pode acontecer a partir dos 15 anos e 6 meses de um(a) atleta.
Além disso, para representar jogadores menores de idade, o agente deve obrigatoriamente concluir cursos específicos da Fifa voltados para essa atuação.
O Dr. João Henrique Chiminazzo, mestre em Direito Desportivo pela Universidade de Lerida, na Espanha, e fundador da Chiminazzo Advogados, fez uma reflexão importante sobre este cenário:
“A regulamentação sobre a representação de atleta menor de 16 anos (para o caso do Regulamento de Agente Fifa) e 18 anos (para o Regulamento Nacional de Intermediários) é de suma importância para a sobrevivência do futebol nacional, principalmente diante do fato de estarmos tratando, em muitos casos, de crianças. Antes de enxergamos o futuro jogador, precisamos nos atentarmos ao ser humano. De um universo de 100 atletas, provavelmente apenas 1, e isso com muita sorte, conseguirá sobreviver do futebol. Por isso a importância e atenção nas jovens crianças, para que tenham uma formação adequada e não caiam nas mãos de intermediários despreparados. O que mais me assusta é que, com as redes sociais, vemos diversos intermediários divulgando que assinaram contrato de intermediação com garotos de 10 ou 11 anos, contrariando os regulamentos e a própria legislação. Isso precisa cessar. É primordial que uma fiscalização ocorra”, enfatizou.
Assim como bem colocado pelo Dr. João, apesar das normas vigentes, é cada vez mais comum ver atletas jovens sendo representados e anunciados publicamente por empresas de agenciamento. Representantes se apresentam formalmente aos clubes em nome de jovens muito distantes da idade mínima prevista pelos regulamentos da Fifa e da CBF. Há casos de crianças de apenas 8, 9 ou 10 anos sendo promovidas por gestores, clubes e marcas patrocinadoras.
A falta de fiscalização e de punição abastece essa realidade que resulta em inúmeros impactos negativos para os jovens/crianças. Um deles é que acelera o processo de profissionalização e antecipa a carga de responsabilidade em sua formação esportiva.
Outro efeito negativo é o crescente número de pais que, temendo que os filhos fiquem em desvantagem em relação a outras crianças que já possuem agentes, sentem-se pressionados a buscar representantes para seus filhos que sonham em se tornar jogadores de futebol.
Fábio Mello, empresário da indústria do futebol, com alta reputação na atividade de gestão de atletas e executivo da FMS Gestão Esportiva, empresa posicionada entre as principais do Brasil, compartilhou sua percepção sobre o contexto:
“Estamos testemunhando uma inversão de valores na atividade de agente esportivo. É fundamental que os agentes se qualifiquem e estejam preparados para transformar a vida dos atletas que representam, sempre dentro das regulamentações que devem nortear essa atividade. No entanto, observamos agentes em busca de atletas cada vez mais jovens, na esperança de encontrar a ‘joia rara’ que possa mudar suas próprias vidas. Além disso, é preocupante que os clubes continuem recebendo agentes de atletas menores de 16 anos, permitindo que esses profissionais gerenciem cada vez mais jovens. Essa situação, possivelmente resultante da falta de comunicação entre clubes, atletas e suas famílias, leva os familiares a se sentirem pressionados a buscar alguém para a gestão dos atletas. Essa percepção alimenta um ciclo que contraria as normas que regem a profissão e expõe atletas e suas famílias a um sistema que não favorece o processo de formação e a construção de uma carreira sustentável”, destacou.
Dentro dos campos, esse fenômeno também impacta a formação dos jovens atletas. O processo de aprendizagem deixa de ser lúdico e de priorizar o desenvolvimento adequado às etapas fisiológicas e emocionais da criança, dando lugar a uma preparação cada vez mais precoce e voltada para a profissionalização. Especialistas alertam para os prejuízos nessa formação, que resulta em jogadores menos criativos e autênticos dentro de campo.
No entanto, os maiores danos ocorrem na construção do indivíduo: a antecipação desse processo impõe pressões excessivas sobre crianças que ainda não têm maturidade emocional para lidar com tais exigências. Os impactos emocionais, psicológicos e esportivos podem ser profundos e, em alguns casos, irreversíveis.
Quem deve assumir a responsabilidade?
Diante desse cenário, surge uma questão fundamental: quem deve ser responsável por frear essa inversão de prioridades no processo de formação de atletas?
Familiares, clubes, gestores de atletas, marcas patrocinadoras, federações, associações de defesa da criança e do adolescente e a própria CBF, entidade máxima do futebol no Brasil, todos esses atores possuem um papel relevante para inibir e/ou impedir essa prática.
Medidas mais rígidas de fiscalização e punição, aliadas a programas educacionais voltados para os pais e os jovens atletas, podem ser um caminho para contribuir para a prevenção e o combate a esse problema, garantindo que a formação esportiva ocorra de maneira ética, saudável e sustentável, e, acima de tudo, respeitando o processo de desenvolvimento integral dos jovens envolvidos com o esporte.
Ana Teresa Ratti possui mais de 20 anos de experiência corporativa, é mestra em Administração, e trabalha atualmente com gestão esportiva, sendo cofundadora da Vesta Gestão Esportiva