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Saúde mental, comportamento e plano de carreira: Sustentação para a alta performance no esporte

Hoje, mais do que força física e talento técnico, o que diferencia um atleta de excelência é sua capacidade de lidar com pressão, frustrações, incertezas e decisões sob tensão

Atacante Richarlison, do Tottenham e da seleção brasileira, já passou por sérias questões de saúde mental - Reprodução / ESPN

Falar de alta performance no futebol (ou em qualquer esporte) sem considerar a saúde mental e o
desenvolvimento comportamental do atleta é ignorar uma parte essencial do jogo. Hoje, mais do
que força física e talento técnico, o que diferencia um atleta de excelência é sua capacidade de
lidar com pressão, frustrações, incertezas e decisões sob tensão.

Esses desafios, tão presentes na rotina esportiva, não são simples de administrar. A exposição
pública, as mudanças de clube ou país, as lesões, a volatilidade dos contratos e a expectativa por
desempenho impõem alta carga emocional, muitas vezes silenciosa. E é nesse cenário que os
cuidados com a mente e o comportamento se tornam não apenas essenciais, mas também
estratégicos.

Esses cuidados, porém, não podem ser pontuais nem superficiais. A construção de competências
emocionais, como resiliência, foco, inteligência emocional e controle de impulsos, exige tempo,
método e suporte técnico. Trata-se de um processo de longo prazo e conduzido por profissionais
qualificados, como psicólogos do esporte, mentores, educadores e gestores, que compreendam o atleta
como ser humano em construção.

No entanto, tão importante quanto reconhecer esses aspectos é integrá-los ao plano de carreira. Saúde
mental e comportamento não devem ser tratados como campos paralelos ou acionados apenas
em crises, mas como parte da estratégia que orienta a trajetória do atleta desde a base.

Afinal, um plano de carreira bem estruturado vai além de negociações, transferências ou
performance: envolve a formação integral do atleta, o fortalecimento de suas habilidades
relacionais, a consciência de seus limites e potencialidades, e a construção de um projeto de vida
com propósito.

Na prática, isso significa um olhar integrado entre as áreas física, técnica, emocional, social,
intelectual e de negócio, conectando treino e futuro, metas esportivas e bem-estar.

Acredito que essa é a chave para ampliar as chances de sucesso e longevidade no esporte. Mais
do que formar atletas vencedores, trata-se de formar pessoas conscientes e preparadas para lidar
com as muitas faces da jornada esportiva, dentro e fora de campo. Por isso, e pensando em
ampliar o entendimento sobre o tema, fiz algumas perguntas para Nell Salgado, que é coach de alta performance.

Ana Teresa Ratti (ATR): Na sua experiência, quais são os principais desafios emocionais que atletas de alta performance enfrentam ao longo da carreira?

Nell Salgado (NS): Como preparadora mental e coach esportiva há 16 anos, posso dizer que o maior
desafio é a visão de mundo e a personalidade do atleta. Os gatilhos que carregamos da nossa
história — crenças sobre certo e errado — influenciam quem somos e o que fazemos. Por mais
que se aprenda a se controlar, a personalidade continua sendo um fator desafiador. Em algum
momento, diante de uma situação pessoal ou contexto fora do controle, algo pode acionar um
gatilho mental ligado à essência do atleta.

Por isso, o autoconhecimento é essencial. Só controlamos o que conhecemos. Entender sua
personalidade, pontos fortes e vulnerabilidades permite gerir melhor esses momentos. Não dá
para eliminar os riscos, mas é possível minimizar danos. Com a experiência, aprendemos a
reconhecer gatilhos e substituí-los por novas respostas: controlar, ressignificar, seguir.

ATR: Como o trabalho de desenvolvimento mental e comportamental integrado ao planejamento
de carreira pode potencializar o desenvolvimento do atleta?

NS: Esse trabalho integrado é determinante para a evolução do atleta. Estamos falando de
campeões, aqueles que se diferenciam, chegam ao topo e se mantêm. Muitos chegam, mas a
constância e a autorregulação exigem que toda a rede se comunique.

Essa rede é formada por pessoas de confiança, que funcionam como base de segurança. Quando
consigo me comunicar com preparador físico, nutricionista, empresário, gestor, técnico, coach, tenho mais informações sobre o dia a dia do atleta. Isso facilita meu trabalho e permite oferecer
ferramentas mais precisas.

Todos nós nos sabotamos em algum grau, e a rotina intensa pode esconder sinais. Quando há
troca entre os envolvidos, temos uma percepção mais real e conseguimos direcionar a carreira
com mais eficácia.

ATR: Quais estratégias você recomenda para que atletas e suas famílias criem um ambiente
saudável entre pressão por resultados e bem-estar mental?

NS: A primeira coisa que digo à família é: a ansiedade por resultados muitas vezes atrapalha. Por
quê? Porque se dá opinião técnica em um campo em que não se tem domínio. Por mais que se
entenda de esporte, não é da sua alçada.

Reporte isso a quem de direito: técnico, preparador, psicólogo, coach, equipe. Leve suas
ansiedades a eles, para que não interfiram negativamente no processo. O pai e a mãe não
querem que o filho se sinta mal, mas é comum não identificar a medida certa. Como estão
presentes o tempo todo, os papéis se confundem.

Principalmente na base, isso é frequente. A opinião dos pais tem muito peso. Imagine: vai para o
treino ouvindo conselhos, volta ouvindo mais, em casa continua ouvindo. Isso desgasta a relação
pessoal e também a esportiva, que é uma relação de trabalho. Para o atleta, o esporte é seu
trabalho.

Minha intervenção é sempre nesse sentido: deixe-o ser atleta. Deixe-o fazer o que precisa ser
feito. Se algo precisar ser comunicado, que seja dentro do processo e com os profissionais
certos.

ATR: De que forma a capacitação dos profissionais que acompanham o atleta contribui para o
desenvolvimento integral da carreira esportiva?

NS: A capacitação desses profissionais é determinante. Não se trata de achismo nem apenas de
vivência. É uma área técnica, e exige estudo. É preciso se atualizar para oferecer a melhor
ferramenta, conforme o momento de cada atleta. Cada um é único. Entender o indivíduo (como
funciona, no que acredita, qual seu perfil) é essencial para não tratar todos da mesma forma.

Dizer “fui atleta, então posso ajudar” não é suficiente. Você tem bagagem, mas também precisa de
formação técnica. É essencial aprender as ferramentas para lidar com as demandas que surgem.

Cada um tem seu papel. E todos precisam trabalhar conectados, em benefício do papel principal:
o atleta. Ele é o centro de tudo. Somos todos coadjuvantes. A única pessoa insubstituível no
processo é o atleta. Por isso, precisamos estudar, aplicar técnica e entregar o melhor a quem
confia no nosso trabalho.

Ana Teresa Ratti possui mais de 20 anos de experiência corporativa, é mestra em Administração, e trabalha atualmente com gestão esportiva, sendo cofundadora da Vesta Gestão Esportiva

Nell Salgado tem em seu currículo diversas especializações como master coach, coaching de alto
rendimento, teamcoaching, coach esportivo, coach, master em PNL, especialista em comportamento
humano, neurofeedback, eneacoaching, master leitura de expressões, master em visualização e
mentalização, meditação e hipnose. Iniciou a carreira em 2009, e hoje é referência no cenário nacional
como coach esportivo na busca por resultados em atletas de alto nível em todas as modalidades

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