Em pouco mais de um ano após a aprovação da Lei 14.193, de 6 de agosto de 2021, que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol (SAF), o Brasil já soma mais de 20 clubes que optaram por esse modelo, visto pelos dirigentes como uma alternativa de negócios para atrair investidores, sanar dívidas, mudar o perfil de gestão e fortalecer o time.
A principal mudança trazida pela SAF e que está estimulando o movimento no mercado da bola é a possibilidade de distribuição de lucros entre seus sócios, o que não é permitido para clubes associativos sem fins lucrativos. A redução de tributos, também prevista na lei, é outro incentivo para essa transição para clube-empresa, que prevê um regime centralizado de execuções, com plano de pagamento dos passivos existentes em até seis anos, renováveis por mais quatro anos.
Quanto custa?
Em dezembro de 2021, o Cruzeiro Esporte Clube anunciou a venda de 90% das cotas da SAF Cruzeiro por R$ 400 milhões para o ex-jogador Ronaldo Nazário, dono também do Real Valladolid Club de Fútbol, da Espanha. O montante refere-se apenas ao valor aportado na SAF, sem incluir os passivos assumidos.
No mês seguinte, janeiro de 2022, o Botafogo de Futebol e Regatas anunciou a venda de 90% das cotas de sua SAF, coincidentemente pelos mesmos R$ 400 milhões, para o empresário americano e dono do Crystal Palace Football Club, da Inglaterra, John Textor.
Mas como se chega ao valor de mercado de um clube?
O primeiro passo é analisar a composição dos ativos e passivos que farão parte da SAF. Muitos clubes possuem, além do time de futebol profissional, uma sede social e esportiva com associados, estádio, centro de treinamento, equipes profissionais de outras modalidades e categorias de base, entre outros ativos. Além disso, é preciso analisar as fontes de receitas, dos custos, despesas, tributos, depreciação, investimentos e capital de giro que compõem o fluxo de caixa projetado para a SAF, e também definir o volume de cotas a ser negociado.
A partir de todos esses dados, pode-se fazer uma abordagem da renda, baseada na projeção de fluxo de caixa futuro, capturando o valor dos ativos tangíveis e intangíveis (marca e torcida, por exemplo) no fluxo de caixa. Essa metodologia leva em consideração a projeção de alguns anos dos itens já citados, cujos resultados são trazidos a valores presentes, incluindo uma taxa de desconto que reflita o risco do negócio. Portanto, é essencial ter um bom entendimento da composição de cada item, checando a confiabilidade dos dados, para refletir de forma assertiva o valor do negócio.
Desafios
A começar pela receita, é fundamental analisar as fontes a serem incluídas no ativo em negociação, como os campeonatos disputados (Regional, Brasileiro, Copa do Brasil, Sul-Americana, Libertadores, Mundial), com suas distintas premiações por fase e pela colocação do time ao final da competição, considerando se o time está em ascensão ou queda. Outras fontes que merecem atenção são a venda dos direitos de transmissão dos jogos para TVs e outras plataformas, a venda de ingressos, anuidades do programa de sócio-torcedor, patrocínios, venda de produtos licenciados e venda ou empréstimo de jogadores.
Vale o mesmo critério para analisar custos e despesas, como gastos administrativos com pessoal, jogos, viagens e acomodações, e com transações de jogadores, incluindo custos com compra ou empréstimo e comissões pagas a empresários.
Governança corporativa e controles internos
Os chamados clubes-empresas precisam criar uma estrutura de governança corporativa e controles internos capaz de atender às exigências da legislação e atrair investidores. E essa é uma jornada desafiadora.
A SAF do Botafogo é um exemplo da extensão desse desafio, haja vista que, em setembro, a imprensa noticiou que a SAF estaria atrasada no atendimento de algumas cláusulas do acordo firmado com a antiga associação esportiva, especialmente em questões vinculadas à transparência das despesas operacionais e em relação aos mecanismos de controle de endividamento.
Em um cenário sem políticas e controles adequados, a apuração dos resultados operacionais torna-se uma tarefa quase impossível. Vale lembrar que a Lei da SAF, que trouxe uma série de benefícios fiscais e tributários, exige também contrapartidas, como a implementação de uma estrutura de governança corporativa e a criação de conselhos de administração e fiscal permanentes.
Portanto, para atender a essas exigências, é preciso fazer um diagnóstico profundo da estrutura de governança da associação antes mesmo da constituição da SAF, caso contrário não será possível uma correta e efetiva atuação dos órgãos de governança.
Vale ressaltar ainda que a indústria do esporte profissional de alto desempenho opera em um cenário complexo, que inclui informações sigilosas e de grande valor estratégico, cuja divulgação pode causar transtornos para a SAF, como a divulgação dos vencimentos de um determinado atleta, valores de prêmios adicionais por metas, informações muito detalhadas ou imprecisas sobre endividamento e capacidade de pagamento, entre outros.
A chave para cumprir as obrigações contratuais sem perder o controle das informações sensíveis é trabalhar a granulometria das informações, ou seja, direcionar aquelas mais detalhadas para um grupo qualificado e restrito. À medida que os relatórios gerarem dados mais genéricos, pode-se ampliar o acesso àquelas informações para outros grupos.
Por isso, o tratamento dado às informações e políticas de divulgação precisam ser trabalhados por equipes que entendam profundamente o que o mercado deve saber, o que os órgãos de governança e reguladores exigem e o que foi estabelecido em acordos particulares e específicos na criação da SAF.
Carlos Alexandre de Oliveira e Alexandre Cecchetti são sócios de transações da Grant Thornton Brasil