A janela de transferências de inverno do futebol brasileiro está aberta. Todos os clubes brasileiros têm até o dia 2 de agosto para registrar novos atletas vindos de clubes estrangeiros, e os participantes das Séries A e B do Campeonato Brasileiro encontram na mesma data o limite para reforçar suas equipes também com atletas hoje empregados por outros clubes nacionais.
Esse período é habitualmente agitado a cada ano e em 2023 não tem sido diferente. O atual momento, contudo, traz alguns desafios adicionais sob o prisma jurídico, uma vez que a regulamentação do futebol passa por um período de mudanças importantes, algumas delas profundas.
Fifa Clearing House
A mais consolidada delas provavelmente é a operação da Fifa Clearing House. Em um breve resumo, trata-se de uma instituição de pagamento sediada na França, constituída com o objetivo de intermediar a transferência de determinados valores entre as diferentes partes interessadas do futebol mundial.
Na primeira etapa de sua implementação, já em vigor, a Clearing House vem atuando como intermediadora dos processos de pagamento de mecanismo de solidariedade e “training compensation” no âmbito internacional (isto é, os mecanismos de compensação aos clubes formadores previstos no Regulamento de Status e Transferência de Jogadores editado pela Fifa). Assim, por meio de uma integração direta com outros sistemas da Fifa utilizados para a formalização de transferências internacionais, em especial o Transfer Matching System (TMS) (“Sistema de Correspondência de Transferência”, em tradução livre), e se valendo das informações fornecidas pelos próprios clubes por meio desses sistemas, a Fifa identifica os clubes formadores do atleta transferido, recebe (em regra, do clube adquirente do atleta) o montante a ser distribuído entre tais clubes formadores, e efetua essa distribuição, observando a proporção cabível a cada um. Esse sistema, portanto, altera o mecanismo anteriormente existente nas transferências internacionais, em que prevalecia a relação direta entre os clubes formadores e aqueles que lhes deviam valores a título de mecanismo de solidariedade, sem intermediação de nenhuma entidade na distribuição desses montantes.
Regulamento de Agentes Fifa
Ao contrário do que ocorre em relação à Fifa Clearing House, o Regulamento de Agentes Fifa ainda se encontra em fase de transição. Estão vigentes apenas as normas relacionadas à obtenção da licença de agente, tanto assim que já foi realizada a primeira prova de qualificação para emissão de licenças, e a segunda ocorrerá em setembro. As disposições que efetivamente regularão as atividades dos agentes em relação a transações internacionais, porém, entrarão em vigor somente em 1º de outubro de 2023.
Já abordamos o tema aqui neste espaço, destacando alguns dos principais aspectos desse novo regulamento. Contudo, hoje o ponto central a ser abordado é que, embora ainda não integralmente em vigor, o Regulamento de Agentes Fifa já vem gerando discussões sobre práticas do mercado.
Isso se deve às significativas modificações que o novo regulamento pretende impor em comparação à regulamentação vigente atualmente. Por exemplo, limitações à dupla representação e o estabelecimento de limites de remuneração aos agentes (com bases de cálculo predeterminadas) potencialmente demandarão mudanças em algumas práticas até então adotadas (de forma legal, diga-se) no mercado.
Contudo, se de um lado o mercado já se prepara para mudanças, de outro fica atento a notícias que vêm da Europa e que indicam alguma possibilidade de que o novo regulamento não chegue a entrar em vigor (ou de que seja modificado antes disso). Um tribunal alemão determinou liminarmente a suspensão da aplicação do Regulamento de Agentes Fifa no país e remeteu o caso ao Tribunal de Justiça da União Europeia.
Embora o caso pareça distante da realidade brasileira, é importante lembrar que, historicamente, as instituições da União Europeia (em especial o Tribunal de Justiça) se revelaram como “moderadores” da regulamentação produzida pela Fifa e por outras federações internacionais. Nesse sentido, uma vez que decisões desses órgãos produzem efeitos nos diversos estados-membros da União Europeia (ou seja, onde se concentram as principais ligas do futebol mundial), elas podem levar à suspensão definitiva dos efeitos de determinadas normas, ou mesmo à sua modificação para melhor adequação ao Direito da União Europeia (como ocorreu, por exemplo, no emblemático caso Bosman, que levou ao fim do passe e à reformulação do sistema de transferências adotado pela Fifa). Em outras palavras, o que acontece na Europa pode, sim, ter impacto em regulamentos da Fifa oponíveis a clubes, atletas e agentes brasileiros, inclusive o Regulamento de Agentes Fifa.
Lei Geral do Esporte
Por fim, chegamos à recente publicação da Lei nº 14.597/2023, que institui a Lei Geral do Esporte. Esse novo diploma legal tinha como objetivo não apenas substituir a Lei nº 9.615/98 (“Lei Pelé”) como principal fonte normativa do esporte brasileiro e com importantes inovações, mas ir além: sistematizar a legislação federal sobre o esporte. Uma iniciativa louvável, que vinha sendo aguardada com muita expectativa por todos os envolvidos com o esporte.
No entanto, a frustração tornou-se proporcional à expectativa. Enviado para sanção presidencial após aprovação do Congresso Nacional, o projeto de lei teve mais de uma centena de dispositivos vetados pelo Presidente da República. Consequentemente, além de afastadas algumas bem-vindas inovações, restou absolutamente prejudicada a ideia de sistematização legislativa, a ponto de ser vetada inclusive a disposição que revogaria a Lei nº 9.615/98 (“Lei Pelé”), que até então era a principal lei federal sobre o esporte.
Temos hoje, assim, uma situação inesperada e que, a depender do caso concreto, pode ensejar inclusive alguma insegurança jurídica: a coexistência de duas leis (Lei Pelé e Lei Geral do Esporte) que se propõem a regular os mesmos temas, reforçando os desafios de um momento marcado por mudanças importantes na regulação do futebol de um modo geral.
Pedro Mendonça é advogado especializado na área esportiva desde 2010, com vasta experiência na assessoria a diversas entidades esportivas, como comitês, confederações e clubes, além de atletas, e escreve bimestralmente na Máquina do Esporte