Esporte feminino convive com aumento do interesse, mas persistência das dificuldades

Nebraska Volleyball

Partida de vôlei feminino universitário teve público de mais de 92 mil pessoas nos Estados Unidos - Reprodução / Instagram (@huskervb)

A filósofa e economista alemã Rosa Luxemburgo costumava dizer que a pessoa que não se movimenta não sente as correntes que a prendem. Isso vale para muitas áreas da vida, inclusive o esporte, que é a expressão cultural das formas e relações de produção da nossa sociedade. O movimento nessa área tem sido intenso nos últimos anos, fazendo aflorar as contradições mais arraigadas e cruéis que ainda persistem neste mundo.

Já faz algum tempo que o empoderamento e o protagonismo das mulheres figuram entre os temas de maior relevância nos debates sociais e políticos ao redor do planeta. No esporte, não poderia ser diferente, com modalidades femininas ganhando cada vez mais os holofotes da mídia e atraindo a atenção do público.

Em ano de Copa do Mundo Feminina, as atenções para a participação das mulheres no esporte cresceram de maneira exponencial, movimento que serve também para deixar à mostra as imensas dificuldades que as atletas ainda precisam enfrentar. São problemas antigos, mas que persistem, como o sinal claro de que o velho sistema, muitas vezes, se recusa a dar lugar ao novo.

A final do Mundial Feminino, que foi disputado na Austrália e na Nova Zelândia e encerrou-se no mês passado, por exemplo, ficou marcada pela cena de assédio sexual praticada pelo presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luis Rubiales, contra a jogadora Jenni Hermoso. E esse fato está longe de representar um problema isolado.

Nos Estados Unidos, jogadoras como Megan Rapinoe e Alex Morgan foram alvo de uma campanha de ódio, por conta da eliminação precoce da seleção norte-americana no Mundial deste ano. Os ataques não diziam respeito ao futebol apresentado pelas atletas (ganhadoras de duas Copas do Mundo consecutivas, fato que não ocorre no futebol masculino desde o bicampeonato do Brasil de Pelé, Didi e Garrincha, em 1958 e 1962), mas sim ao ativismo das jogadoras em prol de causas femininas, como denunciar problemas como o assédio sexual.

No Brasil, a Cazé TV viu-se forçada a desabilitar a função Superchat nas transmissões da Copa do Mundo Feminina no YouTube por causa de comentários misóginos feitos por espectadores.

A cultura patriarcal é a causa das principais barreiras que as atletas mulheres precisam encarar na busca pelo protagonismo no esporte. Machismo que, aliás, proibiu as mulheres de participarem e brilharem em diversos esportes, como no caso do futebol.

No Brasil, é conhecida a legislação que vigorou de 1941 a 1979, proibindo o futebol feminino. Apenas em 1983 ele seria regulamentado no país. Na Inglaterra, a modalidade foi barrada, por lei, de 1921 a 1969. Na Alemanha Ocidental, de 1955 a 1970, sob o argumento de que seria agressiva demais. Na França, a clandestinidade vigorou de 1941 a 1970.

Rompendo barreiras

Apesar das dificuldades, as modalidades femininas têm conseguido avançar de maneira significativa, atraindo grande público tanto em eventos presenciais quanto nas transmissões na TV e no streaming.

Na última semana, por exemplo, foi registrado o maior público da história do esporte feminino. E o mais inusitado é que a partida não envolveu seleções, muito menos clubes profissionais.

Foi em um jogo de vôlei universitário nos Estados Unidos, disputado entre as atletas das Universidades de Nebraska e Omaha, na cidade de Lincoln, na última quarta-feira (30). A partida reuniu 92.003 pessoas em um estádio de futebol americano, superando o recorde anterior, pertencente a Barcelona e Wolfsburg, que levaram 91.648 torcedores ao Camp Nou, numa disputa válida pela Champions League Feminina, em 2022.

O Mundial Feminino também foi marcado pela quebra de recordes, a começar pelo público presente aos jogos. A edição deste ano teve mais de 1,5 milhão de ingressos vendidos.

Na Nova Zelândia, a estreia da seleção local contra a Noruega registrou 39% de audiência. Esta foi a maior audiência para uma partida de futebol (tanto masculino quanto feminino) no país nos últimos 20 anos. Na Austrália, o jogo do time local contra a Irlanda obteve 46,2% de média de audiência, e o confronto ainda atraiu 75.784 pessoas ao Estádio Olímpico de Sydney.

No Brasil, a transmissão dos jogos da Copa Feminina nas TVs aberta e por assinatura atingiram mais de 63 milhões de pessoas na Globo e no Sportv. A eliminação da seleção brasileira diante da Jamaica foi a maior audiência da emissora nas manhãs de quarta-feira nos últimos 21 anos. Já a final da competição, entre Espanha e Inglaterra, rendeu o melhor índice do ano para a faixa horária aos domingos.

No streaming, a transmissão da Copa Feminina também bateu recordes logo na abertura. A Cazé TV, por exemplo, alcançou a marca de 136 mil espectadores simultâneos com Austrália x Irlanda, jogo que foi disputado na rodada inaugural do torneio.

Uma pesquisa recente, divulgada pela Women’s Sport Trust (WST) e a agência Two Circles, mostra que as transmissões de diversas competições femininas do Reino Unido foram assistidas por 37,6 milhões de pessoas em 2022. O número superou a marca registrada no ano anterior, que foi de 32,9 milhões de espectadores. Os eventos esportivos com atletas mulheres ainda levaram mais de 2 milhões de torcedores a estádios no país europeu no ano passado.

“Tenho acompanhado esse crescimento na prática, ou seja, através da movimentação de negócios, de novos eventos, do interesse dos veículos de mídia, bem como do crescimento da audiência”, disse Fábio Wolff, membro do comitê organizador do Brasil Ladies Cup, torneio amistoso de futebol feminino.

Desafios

Fernanda Dias Coelho, CEO da Deixa Ela Treinar, marca especializada em esporte feminino, comemora o crescimento das modalidades protagonizadas por mulheres, mas reconhece que ainda existem desafios a serem superados.

“Embora o esporte feminino esteja ganhando visibilidade por conta do aumento da sua divulgação na grande imprensa, ainda falta muito para que ele seja equiparado ao masculino. Para que os investimentos nas práticas esportivas femininas sejam constantes, é fundamental que a exposição seja contínua. A partir do momento em que houver uma maior exposição, haverá de fato uma mudança de cultura, e os investimentos nas modalidades praticadas por mulheres serão maiores”, afirmou a empresária.

Atualmente, a Deixa Ela Treinar possui contratos com as equipes de futebol feminino de Vasco, Santos e Cruzeiro. Essas parcerias têm o diferencial de destinar percentuais sobre a venda de produtos licenciados para as atletas.

Na avaliação de Fernanda Coelho, a cobertura feita pela mídia esportiva tem um papel fundamental para gerar um interesse maior pelo esporte feminino.

“A partir do momento em que a grande imprensa contribui para que ele seja divulgado, consequentemente as pessoas começam a acompanhar. Portanto, quanto maior a divulgação, mais o público terá acesso e com certeza irá se interessar e acompanhar mais”, enfatizou.

A Globo já anunciou, por exemplo, que fará a transmissão das duas partidas da final da Série A1 do Campeonato Brasileiro Feminino, entre Corinthians e Ferroviária. O primeiro jogo será na próxima quinta-feira (7), em Araraquara (SP). O confronto de volta ocorrerá no domingo (10), em São Paulo (SP).

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