Ciro Torres

Comercialmente, o importante para qualquer evento esportivo é conseguir o apoio de grandes empresas e, principalmente, volumosas receitas. Essa teoria, porém, já não é mais suficiente nos dias atuais, e os Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro, que começam oficialmente nesta sexta-feira, são uma prova.

O cientista político Ciro Torres, coordenador de Responsabilidade Social e Ética nas Organizações do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), não aprova a escolha de pelo menos dois dos seis patrocinadores oficiais do Pan.

“Uma é a empresa de bebida alcoólica. A outra é uma empresa famosa que vive com processos no Ministério Público por conta de trabalhos degradantes de seus terceirizados e quarteirizados. O esporte fica como melhor exemplo para as crianças, mas o pior é ter escravos ou dizer que bebendo você fica mais inteligente, mais esperto, mais sensual”, dispara Torres.

Segundo ele, mais do que o valor dos contratos, os responsáveis pelos planejamentos comerciais para um evento esportivo precisam levar em conta a origem do dinheiro. Em suma, qual o ramo de atividade da companhia e qual o impacto de sua atividade na sociedade.

“Quando se prepara um plano, o responsável tem que pensar em buscar patrocínios de empresas éticas, transparentes, responsáveis e idôneas. Ele tem que pensar na responsabilidade dessas empresas, pois o patrocínio irá influenciar muitas pessoas”, completa o cientista político.

Nesta entrevista exclusiva à Máquina do Esporte, Ciro Torres critica o retorno que o Pan dará à cidade do Rio de Janeiro, diz que muitas empresas são “incoerentes” ao patrocinarem eventos esportivos e faz um alerta:

“A sociedade passará a cobrar cada vez mais práticas diferenciadas das empresas”.

Leia a seguir a entrevista na íntegra:

Máquina do Esporte: Qual a avaliação geral da realização deste Pan no país? O sr. acredita que os investimentos feitos para organizar o evento trarão algum retorno para a cidade ou o país na mesma proporção?

Ciro Torres: Nós tínhamos uma preocupação com a agenda social do Pan, que ela fosse paralela aos investimentos, que se discutisse os impactos positivos sociais na cidade. Essa era a nossa principal preocupação, que houvesse transparência. Mas em minha opinião o retorno não será na mesma proporção do que foi investido. Essa questão das obras sendo feitas de maneira emergencial, dos recursos previstos sendo superados em muito. Isso é um problema sério, principalmente pela falta de transparência.

ME: As empresas Petrobras, Oi, Sol, Olympikus, Sadia e Caixa são as patrocinadoras do Pan. Como o sr. vê esses nomes como parceiros oficiais do evento esportivo?

CT: Um dos motes em minha discussão é a incoerência que existe em algumas empresas que apóiam alguns eventos. É uma incoerência termos empresas de bebidas alcoólicas e cigarros patrocinarem eventos esportivos. Hoje, por exemplo, eu estava vendo um anúncio de uma empresa de cigarro que fazia menção ao esporte. Um escalador fumando um cigarro no topo de uma geleira. Primeiro que isso é uma grande mentira, porque se ele fizer isso ele vai morrer. Isso é um problema, essa propaganda enganosa.

ME: Então o único problema é o ramo de uma empresa nesta questão de patrocínios esportivos?

CT: Tem a ver também com a própria ética das empresas em geral. Algumas têm grande visibilidade e falam de questões positivas para a sociedade, como esporte, cultura, lazer, mas têm problemas em sua cadeia produtiva. Uma empresa não pode apoiar a despoluição da Lagoa Rodrigo de Freitas e ter problemas com o meio ambiente, por exemplo. A outra empresa fala de trabalhos para a sociedade, mas tem trabalho infantil e escravo em sua cadeia. Então existe essa incoerência e as pessoas precisam prestar atenção, pois as empresas têm um grande ganho de imagem com esses megaeventos.

ME: Então empresas com esses perfis traçados pelo sr. não poderiam patrocinar eventos esportivos?

CT: Não há problemas em empresas financiarem eventos. O que a gente critica é o fato de elas terem um discurso de ajuda à sociedade, quando na verdade aquele evento é pontual e no resto do ano elas trazerem danos mais nocivos para a sociedade. Isso acaba sendo quase uma propaganda enganosa. Elas ajudam a construir, mas por outro lado causam danos às pessoas. Isso é o que a gente quer chamar a atenção.

ME: O sr. pode falar o nome das empresas que possuem esse perfil e que patrocinam os Jogos Pan-Americanos?

CT: Aqui no Ibase, nós não podemos “fulanizar”, raramente fazemos isso. Mas eu não faço nenhuma indagação, eu uso apenas dados coletados na imprensa. Chamo atenção aos fatos que estão registrados e noticiados. Uma é a empresa de bebida alcoólica. A outra é uma empresa famosa que vive com processos no Ministério Público por conta de trabalhos degradantes de seus terceirizados e quarteirizados. O esporte fica como melhor exemplo para as crianças, mas o pior é ter escravos ou dizer que bebendo você fica melhor.

N.R.: Em seu artigo na publicação “Democracia Viva”, o cientista político cita nominalmente as marcas Sol e Oi, referentes à empresa de bebidas alcoólicas e denúncias feitas pelo Ministério Público do Trabalho referentes à Telemar, respectivamente.

ME: Mas existem apenas essas duas empresas, entre os patrocinadores do Pan, com problemas de incoerência?

CT: A gente pegou alguns exemplos, mas não queria “fulanizar”. Isso você pode fazer com qualquer empresa, pois sempre terá o lado positivo e o negativo. O problema é quando temos mais negativos que positivos. Muitas empresas usam esses patrocínios como parte de uma ação compensatória para livrar a sua imagem. Mas temos que tomar cuidado para não engrossar um falso discurso de melhorar a sociedade.

ME: É possível realizar escolhas “coerentes” de patrocínios sem atrapalhar o plano comercial de um evento?

CT: Eu acho que é possível e que deve ser levado em conta. Quando se prepara um plano, o responsável tem que pensar em buscar patrocínios de empresas éticas, transparentes, responsáveis e idôneas. Ele tem que pensar na responsabilidade dessas empresas, pois o patrocínio irá influenciar muitas pessoas.

ME: Como esse trabalho seria possível?

CT: Muitos eventos esportivos têm um código de ética e conduta na hora de estabelecer e buscar patrocínios e recursos para eventos. Muitos eventos deixaram de receber dinheiro de empresas envolvidas em corrupção, ou tabaco, ou bebidas alcoólicas. Essa é uma tendência mundial. Na Fórmula 1, por exemplo, o patrocínio de cigarro tem trazido problema em diversos países do mundo. Então isso não é invenção de uma ONG radical, faz parte de uma realidade mundial.

ME: E como estão esses trabalhos no Brasil?

CT: Tem algumas organizações que estão engajadas. Existe uma campanha nacional no Brasil, ligada a uma internacional, que tem como objetivo combater a indústria do tabaco e se chama “Não seja cúmplice da indústria do tabaco: aceitar doações e parcerias ajuda a vender mais cigarros!”. Essa campanha já tem a adesão de várias ONGs que não aceitam financiamento de empresas de cigarro.

ME: Como é a atuação do governo nesta questão de coibir algumas empresas a patrocinarem eventos esportivos?

CT: Nessa área nós precisamos ainda ter um compromisso claro e transparente de quem investe os recursos ou que empresas estão sendo contratadas para determinados serviços. No Pan, que entra em uma questão público-privada, os governos estão envolvidos, mas um evento assim deveria ter um código de conduta e ética que afirma que tais empresas não podem patrocinar ou realizar obras. Essa seria uma boa medida, pois envolve muito dinheiro público.

ME: Existe esperança de que ocorram mudanças nesse sentido nos próximos anos, ou até a Copa do Mundo de 2014, que pode acontecer no Brasil, por exemplo?

CT: Não sei, mas na Copa de 98, a Nike foi denunciada por uso de trabalho infantil na confecção de bolas na Ásia. Foi um impacto profundo para a imagem dela. Ela desenvolveu trabalhos para melhorar essa situação, mas teve uma queda no Mundial seguinte. Será que foi coincidência? Será que medidas desse tipo podem impactar também no futuro grandes eventos como Copa do Mundo, Olimpíadas ou até o Pan? Eu creio que sim, pois a sociedade passará a cobrar cada vez mais práticas diferenciadas das empresas.

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