Heraldo Panhoca

O Brasil irá sediar a Copa do Mundo em 2014, o maior evento futebolístico do planeta, e multiplica-se a discussão sobre o papel do governo nesse contexto. Isenção tributária? Mudanças na legislação? Uso de dinheiro público? Para o advogado Heraldo Panhoca, coautor da Lei Pelé, a questão se trata de aceitar ou não as imposições feitas pela Fifa.

Quanto à isenção tributária, proporcionada pelo governo brasileiro para que os investimentos necessários sejam feitos, o advogado acredita que o cenário não tem sido interpretado corretamente. “Não foi a Fifa que obrigou o Brasil a sediar a Copa”, argumenta Panhoca. “Quem se candidatou a trazer o espetáculo foi o Brasil e, para trazer esse circo, o organizador coloca regras”.

A partir dessa visão, o profissional especializado em direito desportivo elogia a disposição do São Paulo em não se submeter às exigências da Fifa. Para ele, o estádio Morumbi foi descartado do planejamento para o torneio pois o clube não aceitou elevar gastos. “Foi um grande cala boca”, define. Colocar-se dessa forma, contudo, representa o risco de não participar da competição ou, no caso do Brasil, não sediar o torneio.

Em relação à Lei Pelé, a qual foi resposável por colaborar na redação, Panhoca se posiciona contra determinadas alterações e garante que a versão mais próxima do ideal é a original. “Sou advogado, tenho minha tribuna para bradar, direito de questionar deputados, mas não tenho poder de veto”, admite, contudo.

Entre outros assuntos, Panhoca, professor da Trevisan Escola de Negócios, ainda crê que a Copa do Mundo não é responsável pelo crescimento no número de cursos e palestras ligadas à gestão desportiva ou ao direito desportivo. Pelo contrário, o fator responsável por fomentar esse mercado foi a Lei Pelé. “Um divisor de águas. O resto é balela”, arremata.

Leia a seguir a íntegra da entrevista:

Máquina do Esporte: Qual sua opinião sobre a isenção tributária em atividades que envolvam a Copa do Mundo no Brasil? É uma medida necessária?

Heraldo Panhoca: A situação é a seguinte: o organizador, o patrocinador, a empresa de marketing que irá organizar a Copa detém todos os direitos. Nós devemos observar a seguinte situação: quem se candidatou a trazer o espetáculo foi o Brasil e, para trazer esse circo, o organizador coloca regras. Se elas ferem a soberania, o país pode aceitar ou não, mas sofre o risco de não ter o evento. Não foi a Fifa que obrigou o Brasil a sediar a Copa. O Brasil disse: “eu quero”. As condições são essas. É bem diferente se pensar nessa colocação. O governo aceitou fazer e, se formos ver a legislação, a Lei Pelé, o artigo primeiro garante que se siga as regras internacionais de desporto, o que confere à Fifa ou a quem organizar um campeonato de vôlei, basquete, natação, Fórmula Indy ou Fórmula 1 a possibilidade de fazer uma série de imposições. Existem normas que eles redigem. Se não aceitar, não tem a realização, a patente da Fifa. Se pode abrir mão da Copa, como fez o São Paulo, de grande valia. ‘Quer que o estádio custe tanto?, eu não quero, então tire da Copa.’ O São Paulo fez um grande cala boca à Fifa. Cabe ao governo dizer: “você quer isenção por isso? Não vou dar”. Não ter Copa é uma questão de opção.

ME: Estima-se que o Brasil deixe de arrecadar milhões em impostos entre 2011 e 2015. De que forma a perda dessa receita pode prejudicar ou beneficiar o país?

HP: Quando, lá atrás, a CBF foi autorizada pelo governo federal e pelo público, e é notório que o governo autorizou a CBF a comandar, essas contas foram feitas. Imagino que aquilo que a Fifa está pedindo e a possível perda tributária esteja muito bem equacionado. No momento me que se autorizou a fazer essas contas, a consequência é o risco que o governo assumiu em nome da população. O povo não se rebelou contra, eles acabaram por fazer seus atos e agora o povo aplaude. Voltemos ao Panamericano. Com todos os desmandos e desvios, a população continua aplaudindo, seja pela realização do evento ou pela inércia.

ME: Há alguma maneira de garantir que a promessa do governo de utilizar dinheiro público apenas em obras de infraestrutura seja cumprida?

HP: Quem é responsável por isso é o Tribunal de Contas da União. A transparência é algo que cabe a eles e a população tem de cobrar nas urnas.

ME: Existe a possibilidade de realizar alterações na legislação brasileira até a Copa de 2014, a fim de facilitar investimentos?

HP: Existem duas maneiras, hoje. Leis que, como envolvem orçamento, verba pública, são projetos encaminhados pelo executivo à Câmara. A Câmara aprova, passa ao Senado e o presidente sanciona. O caráter urgencial faz com que tramite em dois ou três meses. Se for do interesse da administração, deputados e senadores são sensíveis e isso faz ir mais rápido. Outro mecanismo é a medida provisória, justificando a realização da Copa ou dos Jogos Olímpicos como gênero de necessidade. O governo pode baixar medidas provisórias e delimitar essa atuação. Pode dar deferimento tributário, uma série de coisas. Todos os atos terão de partir do executivo. A Câmara e o Senado não podem fazer leis sobre despesas, só o executivo. Como aprovou a Copa, por meio de projeto de lei ou medida provisória, se baixar hoje e publicar amanhã, é fácil fazer.

ME: Essas alterações podem ser mantidas após o término da Copa? Por quê?

HP: Se for medida provisória, pode sofrer emendas. Além de que todas as leis podem ter período de validade. Pode fazer por um, dois, três, cinco anos ou, se não tiver validade, valer até ser revogada. Ter um prazo de vigência ou não.

ME: Estima-se que o setor privado irá arcar com 58% dos custos para a Copa. O senhor acredita que essa projeção se confirme ou o setor público terá de aumentar os gastos para finalizar obras?

HP: Não tenho a menor ideia porque não vi documentos relativos a custos. Pelo exemplo dado no Panamericano, fico receoso que possamos ter os mesmos estouros de caixa.

ME: A participação do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) no futebol brasileiro tem crescido nos últimos anos, por meio de punições a atletas ou clubes. Essa interferência é benéfica para o futebol? Qual é o limite?

HP: O STJD tem a seguinte característica: ele é a última instância, a terceira no processo regional e a segunda no nacional. A Federação Paulista de Futebol tem um tribunal, a primeira instância. Se um um atleta for punido e quiser recorrer, pode ser avaliado na instância regional por uma comissão, por meio de um recurso ao Tribunal Regional. Se ainda assim ele tiver elementos para buscar o superior, a terceira, ele irá buscar. Em outro caso, quando São Paulo e Palmeiras jogam pelo Campeonato Brasileiro, muda de figura. É uma anomalia, porque é regido pelo mesmo código mas passa pelo Superior Tribunal. E é julgado em primeira instância pela regional e depois pelo superior, então diminui uma instância. Observe que o fato de aplicar a punição, desde que cercado pela razão e pela segurança, é excelente para a prática desportiva. É indissociável, absolutamente positivo, em todas as vezes que houver violação.

ME: Como um dos coautores da Lei Pelé, quais alterações a lei ainda precisa sofrer para se aproximar do ideal?

HP: Sofremos várias alterações desde 2000 e temos outra, mais recente, aprovada na Câmara e no Senado. Todas as alterações posteriores regrediram o espírito original. Foi para pior. Com alguns pequenos ajustes, eu diria que a volta da redação original é muito melhor, mais benéfica, muito mais equilibrada. O que se tem é o que se está sendo proposto, na proteção à criança, ao educando, sobre atividade física regrada, sobre maus tratos. No Brasil o atleta nasce aos 14 anos. Houve comoção nacional contra. Vários países adotam 14 como legal. Hoje se diz que o atleta precisa ter 16 anos, provando que a Lei Pelé em 1998 trouxe o marco de proteção à criança, aceite você ou não. Então a Câmara aprova a lei fazendo voltar a 12 anos. Isso é regredir violentamente no sentido de proteção à criança, que será mutilada em função dos maus tratos.

ME: O senhor tem se posicionado contra mudanças na Lei Pelé? Por quê?

HP: Ela já sofreu “n” alterações. Tenho lutado contra várias. Já consegui tirar do texto algumas coisas, mas devido ao princípio democrático de que a maioria prevalece, sou obrigado a aceitar o que a Câmara aprova, mesmo que não concorde. Sou voto único. Se ainda fosse deputado ou senador, teria voto, mas nem isso. Sou advogado, tenho minha tribuna para bradar, direito de questionar deputados, mas não tenho poder de veto. O único que tem esse direito é o presidente. Mas algumas críticas foram aceitas e os textos voltaram mais equlibrados, tranquilos.

ME: Com a Copa a ser sediada no Brasil em 2014, deve haver aumento no número de cursos e eventos na área do direito desportivo. Esse aumento na quantidade pode interferir na qualidade do ensino?

HP: Não há relação. O incremento em cursos de gestão e direito começou com a Lei Pelé. Esse é o divisor de águas. No mesmo período se criou a Lei de Educação Física, com regulamentações, se criou a atividade de gestor. A Copa, muito pelo contrário, irá trazer malefícios, até porque irá generalizar uma série de conceitos em uma fonte só. Um deles é a submissão do estado a uma ong internacional chamada Fifa, que irá fazer o Brasil abrir mão de normas tributárias internas para satisfazer o organizador. Já é o primeiro malefício. Há uma série de circunstâncias: perdemos autonomia em determinadas áreas, coisas que só irão valer para o evento, mas que podem virar regra de alguma forma. É difícil ter bola de cristal, mas que a busca pelos cursos não veio com a Fifa, nem com o Panamericano, nem com Jogos Olímpicos, não veio. Veio pela radical mudança que a Lei Pelé fez no desporte. O resto é balela. Não tem influência, tanto que começamos em 2001 na Trevisan e crescemos até outros nos copiarem. Não foi a Copa.

ME: Como o profissional que deseja se aperfeiçoar em direito desportivo deve investir tempo e dinheiro nos próximos anos? Como identificar quais cursos ou quais eventos valem a pena?

HP: Tem uma série de coisas a se fazer em direito desportivo e a primeira é se formar em direito. Se quiser gestão, é outra história. Aí pode ter outra qualificação porque gestão envolve administração, contabilidade, educação física. Mas tem que ser advogado, ter profundo conhecimento em legislação trabalhista e fazer mestrado e doutorado na área. Pode se especializar em legislação nacional, nacional e internacional, só internacional, mas terá que fazer graduação, mestrado, doutorado e cursos de extensão, se desejar. De 2000 para cá, muitas faculdades têm colocado o direito na grade curricular normal, o que seria muito bom para o jornalismo, também, bem como em educação física e economia. Quem escreve demonstra total incapacidade para lidar com o texto legal porque não teve oportunidade de aprender.

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