Cuca comenta, enfim, condenação na Suíça, compara silêncio a covardia e diz querer ser parte da transformação

Cuca assumiu o Athletico-PR na semana passada - José Tramontin / athletico.com.br

Mea culpa é uma expressão em latim, mas que acabou por ser incorporada ao nosso vocabulário atual pelo fato de haver sido, durante séculos, utilizada nas orações de confissão da Igreja Católica. Ela é proferida no momento em que o fiel admite, publicamente ou dentro do confessionário, sua culpa, sua máxima culpa.

Neste domingo (11), após a goleada do Athletico-PR sobre o Londrina, por 6 a 0, válida pelo Campeonato Paranaense, o técnico Cuca aproveitou para tentar fazer a expiação pública de seus erros do passado.

Recém-contratado pelo Furacão, o treinador utilizou a coletiva pós-jogo para ler um comunicado público, em que abordou o caso de violência sexual ocorrido em 1987 e que resultou em uma condenação para ele e outros três atletas do Grêmio, pela Justiça da Suíça.

O episódio ocorreu durante uma excursão do clube gaúcho ao país europeu, mais precisamente quando o elenco estava na cidade de Berna. Cuca e outros três jogadores foram acusados de praticar estupro coletivo contra a adolescente Sandra Pfäffli, de 13 anos, no apartamento 204 do Hotel Metrópole.

Após uma investigação preliminar, Cuca e os três outros jogadores, que alegaram não saber a idade da vítima e que o ato teria sido consensual, acabaram sendo indiciados com base no artigo 187 do Código Penal da Suíça, que proíbe relações sexuais com menores de 16 anos. Eles passaram cerca de um mês detidos, até que puderam retornar ao Brasil. Depois, em 1989, foram condenados a uma pena de 15 anos de prisão, mas que jamais cumpriram, uma vez que nunca voltaram a pôr os pés no país europeu.

A vítima morreu em 2002, aos 28 anos. Cuca, por outro lado, passou um bom tempo treinando grandes clubes brasileiros e conquistando troféus. Mais recentemente, apenas, é que sua presença no universo do futebol passou a ser questionada, graças à pressão de torcedoras de diferentes equipes. No ano passado, depois de sua passagem relâmpago pelo Corinthians, encerrada por conta de cobranças vindas inclusive do time feminino do Alvinegro, o treinador resolveu remexer na ferida que parecia estar cicatrizada.

Cuca conseguiu a anulação do processo na Suíça, uma vez que o crime pelo qual fora condenado já estava prescrito e o filho da vítima optou por não dar andamento ao caso. Mas o técnico percebeu que a sentença favorável (e que não o inocentou, diga-se de passagem) não teria o poder de alterar sua imagem perante parte da opinião pública. E, em seu retorno a um clube da Série A do Brasileirão, resolveu falar sobre seu passado incômodo.

Treinador compara próprio silêncio a covardia

“Confesso para vocês que estou nervoso”, disse Cuca, ao iniciar sua mea culpa. Ali, ele não estava diante de um sacerdote que levaria seus segredos para o túmulo, mas sim de dezenas de câmeras e jornalistas.

A confissão não foi feita com palavras espontâneas, mas sim com um discurso meticulosamente elaborado. Cuca afirmou que, antes de escrever o texto, escutou a esposa e as filhas. E que elas teriam ajudado a escrever o discurso. “Porque ainda não me sinto com conhecimento suficiente para falar sobre algo tão forte”, justificou.

Apesar de, no início da carta, Cuca alegar que não seria muito bom com as palavras e que teria um jeito “boleirão”, ele demonstrou, no texto, haver capturado o “espírito do tempo”, incorporando bem os jargões muito presentes nos escritos que abordam essa temática na atualidade.

“Não é só sobre mim, mas é sobre mim também. Eu escolhi me recolher durante muito tempo, mas consegui seguir a minha vida, enquanto uma mulher que passa por qualquer tipo de violência não consegue seguir a vida dela sem permanecer machucada, carrega o impacto para sempre. Eu consegui seguir minha vida. O mundo do futebol e o mundo dos homens nunca tinha me cobrado nada, mas o mundo está mudando, e eu acho que é para melhor”

Cuca, treinador do Athletico-PR

O técnico fez uma autocrítica em relação à postura que escolheu adotar, diante de questionamentos relacionados ao caso, surgido ao longo dos anos.

“Eu enxergava os problemas, mas me calei porque a sociedade permitia que eu, como homem, me calasse. Hoje, entendo que o silêncio soa como covardia. Tenho buscado ouvir mais, entender mais, aprender mais”, declarou.

Ser parte da transformação

“Não posso mudar o passado”, reconheceu Cuca, em seu discurso. Ele, porém, declarou estar disposto a tentar alterar o futuro.

“Quero e me comprometo a fazer parte da transformação. Vou fazer isso com o poder da educação. Quero ajudar. Quero jogar luz, usar a voz que tenho para, ao mesmo tempo que me educo, educar também outros homens, principalmente os jovens que amam futebol”, disse.

Segundo ele, “a realidade tem que ser transformada para que o mundo seja um lugar mais seguro para as mulheres”. Ele também admitiu que “o mundo do futebol ainda é um mundo de muito preconceito”.

“Eu pensei que eu estava livre da minha angústia quando solucionei meu problema com a anulação do processo e a indenização. Mas entendi que não acabou porque não dependia apenas da decisão judicial, mas que eu precisava entender o que a sociedade esperava de mim. O que vocês vão ver de mim daqui para frente não serão palavras, serão atitudes”, prometeu Cuca.

Sucesso traz responsabilidades

O discurso de Cuca acabou por abordar um assunto que foi tema da coluna assinada por Ana Teresa Ratti, cofundadora da Vesta Gestão Esportiva, na Máquina do Esporte, nesta segunda-feira (11).

“Sucesso repentino é desafio. Muitos se perdem pelo caminho com fama e dinheiro. Somos levados a acreditar que podemos tudo, inclusive desrespeitar as mulheres. Precisamos dar aos mais novos a oportunidade de não errarem como tantos de nós erramos. É ali que podemos sensibilizar, colocar para pensar, orientar. Sucesso, dinheiro e fama não servem para nada se você se perder no caminho”, afirmou o treinador.

Ao analisar recentes casos de violência sexual envolvendo astros do futebol, partindo da condenação do lateral-direito Daniel Alves por estupro, na Espanha, a executiva propôs uma reflexão.

“Diante disso, o que cabe e o que é possível aos gestores do futebol brasileiro para que a formação dos nossos atletas estimule cada dia mais a que eles sejam melhores pessoas, mais conscientes de seus deveres e responsabilidades, assim como dos seu limites? Esse último item, os limites, é parte importante desta reflexão, já que atletas comumente estão em posição de ídolos, de pessoas com ‘superpoderes’, capazes de feitos acima da média, admirados e fontes de inspiração para muitos”, escreveu Ana Teresa.

Em entrevista por telefone, ela comentou suas impressões acerca das declarações do treinador do Athletico-PR.

“O discurso de Cuca é muito impactante, inédito, direto, emocionado e com a presença das mulheres. E ele meio que fez a mea culpa, pois, até então, o habitual seria tentar se esquivar e se calar. Então, é um momento emblemático”, analisou.

Segundo ela, o conteúdo de sua coluna, que coincide com várias das declarações feitas pelo treinador, buscou ir além da crítica a casos específicos.

“Tratar do assunto é importante. Mas minha coluna parte da perspectiva de questionar o que é possível fazer, na gestão do futebol, para que se tenha um contexto diferente na formação dos atletas”, explicou.

“Temos de olhar não apenas o problema, mas apontar para a solução. Não adianta eu apenas dizer que o machismo é ruim ou criticar este ou aquele jogador. É preciso indicar caminhos e, a partir disso, gerar evolução do futebol, ajudando nossa sociedade a avançar como um todo”, disse Ana Teresa.

Sair da versão mobile