A justiça julga. E nós, gestores do futebol?

Liderança da seleção brasileira até a última Copa do Mundo, Daniel Alves foi condenado pela Justiça da Espanha a quatro anos e seis meses de prisão pelo estupro de uma jovem em uma boate em Barcelona, em dezembro de 2022 - Arte / Máquina do Esporte

Mais um motivo para agir

Daniel Alves, atleta importante para o futebol brasileiro, liderança da nossa seleção brasileira até a última Copa do Mundo, condenado pela Justiça da Espanha a quatro anos e seis meses de prisão pelo estupro de uma jovem em uma boate em Barcelona, em dezembro de 2022.

Partirei da ideia de que não está mais em aberto o julgamento. Partirei também da ideia de que esse caso simboliza tantos outros de violência contra a mulher registrados dentro e fora do futebol. Será considerado ainda que o futebol é o esporte mais amado no Brasil e, portanto, tem um potencial gigantesco de ser instrumento de desenvolvimento humano e social.

Para embasar o início desta reflexão, trago números da publicação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023: foram registradas 74.930 vítimas de estupro em 2022, o maior número da história registrado até então. Arrisco dizer que o aumento, na verdade, reflete o estímulo recente para que as denúncias sejam feitas. Todos sabemos que há muitos casos não registrados.

O que nos cabe?

Diante disso, o que cabe e o que é possível aos gestores do futebol brasileiro para que a formação dos nossos atletas estimule cada dia mais a que eles sejam melhores pessoas, mais conscientes de seus deveres e responsabilidades, assim como dos seu limites? Esse último item, os limites, é parte importante desta reflexão, já que atletas comumente estão em posição de ídolos, de pessoas com “superpoderes”, capazes de feitos acima da média, admirados e fontes de inspiração para muitos.

O tema faz-se relevante a quem ocupa posições de gestão no futebol, minimamente, porque o contexto descrito acima, muitas vezes somado à precária origem cultural e social dos atletas brasileiros, pode ser terreno fértil para a distorção da sua autopercepção em relação ao seu papel na sociedade.

Indo além, diante do caso de Daniel Alves e de tantas outras ocorrências envolvendo jogadores de futebol e violência contra a mulher, é essencial que os gestores do futebol brasileiro assumam uma posição proativa e responsável na formação e orientação dos atletas. O futebol não apenas tem o poder de influenciar o desenvolvimento humano, como também carrega uma grande responsabilidade social.

Uma abordagem ampla e corajosa é necessária para a formação dos nossos representantes dentro dos gramados. Ir além do treinamento físico e técnico, e incorporar aspectos éticos, morais e comportamentais à formação dos jogadores desde as categorias de base deve estar entre as prioridades no processo de formação que, portanto, deve ser integral. Felizmente já há iniciativas consistentes neste sentido.

Murilo Marques Miura, CEO do CFC Tietê, corrobora com esta visão. O gestor pondera que “o Brasil é um país famoso pela rica cultura no futebol, uma base extensa de talentos e com a indústria do futebol em constante evolução com as SAFs e Ligas. Por outro lado, na base de muitos clubes, ainda temos uma carência de investimentos, com uma gestão inadequada e desigualdade nas assistências e oportunidades. Conscientes deste panorama, nós, do CFC Tietê, temos investido e trabalhado fortemente nas categorias de base, com os programas de alto rendimento e iniciação esportiva com impacto social, com foco na formação integral do atleta, inclusive obtendo a certificação da CBF [Confederação Brasileira de Futebol] como Clube Formador”.

Formação integral na prática

A exemplo do que se vê no CFC Tietê, devemos investir em programas de educação que enfatizem valores como respeito, integridade, responsabilidade e empatia. O ser humano melhor sempre será um atleta melhor e, inclusive, um ativo melhor e com maior potencial de retorno em relação aos investimentos financeiros feitos em sua formação.

Esse desenvolvimento deve acompanhar toda a carreira, pois não se trata de tarefa fácil de ser compreendida e assimilada. Palestras isoladas seguramente não cumprirão com esta necessidade no processo de formação. Dominar o ego que, naturalmente, é estimulado a se tornar gigantesco e pode encorajar o posicionamento acima das pessoas “comuns”, ultrapassando limites, é apenas parte dos desafios desse processo que passa essencialmente por aspectos emocionais e comportamentais.

Fabiana Ratti, psicóloga e psicanalista, diretora da clínica Unbewusste, explica que “o ser humano tem suas nuances, momentos e rompantes. É um ser dividido entre o racional e o emocional, entre o ego e o posicionamento de sujeito. Em ‘Mal-estar na civilização’ (1930), Freud (1856-1939) discute o quanto os seres humanos precisam lidar com a própria agressividade e sexualidade”.

A psicóloga e psicanalista avalia ainda que “no ambiente do futebol, muitas vezes estamos tratando de um ser humano em formação, já que, comumente, atletas saem de casa, do núcleo familiar, muito jovens, ainda em processo de desenvolvimento emocional, época em que são feitos os contornos de limites fundamentais para a vida adulta. O exercício civilizatório e cultural é frear os impulsos em prol de valores humanos para conviver em sociedade. A família e a educação contribuem para transmitir esses valores. Desta forma, é preciso incentivar os cuidados com a saúde e o desenvolvimento mental, para que consigam crescer na carreira, bem como em sua vida emocional, com o respaldo necessário para redirecionar esses impulsos para posicionamentos saudáveis, respeitosos e inclusivos”.

Para além de aspectos emocionais e comportamentais, ainda que em dado momento haja idolatria e veneração por sua performance e por representar um time que seja a paixão de muitos ou alguns (não importa o tamanho do clube, quem ama futebol sente isso verdadeiramente), é importante que os atletas compreendam que ser um jogador de futebol não os exime de seguir as leis e respeitar os direitos das outras pessoas. Ter acesso ao conhecimento e às informações ligadas a esse aspecto do tema é igualmente útil para o processo de desenvolvimento humano e profissional.

A complexidade do futebol só aumenta

Como desafio adicional, vale ressaltar que o futebol como profissão está se tornando cada vez mais complexo, abrangendo diversas áreas dentro e fora dos campos. Por exemplo, um atleta é, inevitavelmente, embaixador do seu clube e das marcas que representa. Quando está em público, seu comportamento diz sobre seu posicionamento pessoal, e isso reflete em seu contexto esportivo. Com a comunicação digital onipresente, a presença constante dos smartphones e a proliferação das redes sociais, tudo isso é amplificado.

Já abordei aqui que essa é a realidade, não há como desconsiderar. A nós, gestores do futebol, cabe incluir, na formação dos atletas, conhecimentos que os levem a considerar esse cenário e, minimamente, entender o potencial desse contexto, para o bem e para o mal. Da mesma forma que é possível ampliar o alcance de feitos esportivos positivos, uma filmagem não autorizada ou uma imagem capturada por terceiros pode vir a público e ganhar dimensões globais.

Os desafios não são simples, porém a necessidade de se considerar a formação integral do atleta é cada dia mais evidente, assim como o potencial deste processo ser um importante agente de transformação social, já que milhares de jovens passam por clubes, escolinhas e organizações esportivas visando a alta performance ou não.

Oportunidade e necessidade

A coluna deste mês buscar também chamar atenção para a evidente oportunidade de líderes do futebol brasileiro trabalharem em estreita colaboração com outras instituições, como escolas e organizações comunitárias, com foco em criar uma rede de apoio abrangente para os jogadores, assim como para ampliar o potencial de impacto social desse esporte que é a paixão nacional.

Finalizo sugerindo: assumir a responsabilidade de promover uma cultura de integridade, respeito e responsabilidade entre os jogadores não traz somente benefícios sociais e de desenvolvimento humano, mas é essencialmente o caminho para preservar a marca “futebol brasileiro” e garantir que o esporte amado nacionalmente continue a ser uma fonte de orgulho e inspiração para o Brasil.

Ana Teresa Ratti possui mais de 20 anos de experiência corporativa, é mestra em Administração, trabalha atualmente com gestão esportiva, sendo cofundadora da Vesta Gestão Esportiva, e escreve mensalmente na Máquina do Esporte

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