Os investimentos de vulto que o governo da Arábia Saudita realiza em diversos setores, em especial no esportivo, têm rendido grande discussão em todo o mundo, principalmente no Ocidente. Quando esse movimento ganhou força, sobretudo a partir do fim do ano passado, quando o craque português Cristiano Ronaldo anunciou sua ida ao Al-Nassr, muita gente (inclusive da mídia) ficou perplexa.
A contratação do atacante foi seguida pelas de outros astros internacionais, incluindo o brasileiro Neymar, hoje no Al-Hilal, fato que acabou por converter o reino localizado no Oriente Médio em um dos destinos mais badalados do futebol mundial.
Se muitos foram tomados de surpresa por essa sucessão de notícias, a jornalista e publicitária Marina Nishitani encara esse movimento com naturalidade. Especialista em megaeventos, ela teve a oportunidade de acompanhar de perto o processo que antecedeu esse momento, em que a Arábia Saudita tenta se firmar como potência esportiva mundial.
Entrevistada do Maquinistas desta terça-feira (28), Marina explicou que os investimentos do país asiático na área esportiva são parte de um projeto muito maior.
“Os sauditas entenderam, já há algum tempo, que o petróleo é um recurso finito, e eles sabem que precisam investir em outras coisas, expandir o investimento, rentabilizar a economia. Existe o que eles chamam de ‘giga projects’, que são projetos bilionários no país todo. Então, a economia está crescendo para todo lado. O esporte é só um um dos braços, digamos”, afirmou.
Desafios culturais
De acordo com Marina Nishitani, a Arábia Saudita busca abrir suas portas para o turismo internacional. Nesse cenário, um dos principais desafios do país é justamente lidar com as diferenças entre os costumes de seu próprio povo e os dos visitantes estrangeiros.
“Estamos falando de um país que passou a vida toda regido por outros costumes, que são totalmente diferentes dos nossos. Então, acho que eles estão interessados em fazer esse movimento, mas as coisas levam tempo. Obviamente, eles [os sauditas] têm o dinheiro, mas existem coisas que estão caminhando ainda. É um processo. Mesmo que o governo esteja motivado e determinado a fazer mudanças, tem toda uma população que precisa acompanhar isso. Ainda existem desafios, e o maior é o cultural, de entender como que você se mistura aos estrangeiros e os recebe bem”, ponderou.
Entre as dificuldades citadas por ela estão as próprias resistências dos povos ocidentais em compreender a lógica da cultura saudita, como no caso do uso do véu pelas mulheres muçulmanas do país.
“Hoje, tenho muitas amigas lá [na Arábia Saudita], e isso é um tema que todo mundo quer conversar comigo, mas sempre pergunto se incomoda e se pessoa gostaria de não usar. ‘Não, estou guardando a minha beleza tradicional para o meu marido’. Então, não é tanto só uma imposição, é uma questão cultural. Elas veem beleza nisso. Acho que, hoje, o maior desafio dos dois lados, para eles e para nós, é a gente se entender no meio do caminho”, destacou.
Efeito CR7
Na visão de Marina, a ida de Cristiano Ronaldo para o Al-Nassr, oficializada em 30 de dezembro do ano passado, pode ser encarada como o ponto decisivo para que a Arábia Saudita tenha se firmado no cenário esportivo internacional.
“Dificilmente um outro atleta teria força de fazer o movimento que o Cristiano fez. Morei lá em 2019, foi o primeiro evento. Ainda não estava acontecendo o que ocorre hoje, não de forma midiática. Foi o Cristiano Ronaldo que levou isso. Acho que só alguém com a grandeza dele, com o entendimento de negócio, porque o que ele fez é um negócio gigantesco. Ele tem um contrato com o governo, é embaixador e tem alguns compromissos com o país”, comentou.
Na época em que ela iniciou sua trajetória no Oriente Médio, o país estava longe de possuir o apelo midiático atual.
“Acho engraçado que, antigamente, digamos, três anos atrás, falavam assim: ‘Ah, esse cara não vai dar em nada, vai acabar lá na Arábia Saudita'”, recordou-se, referindo-se a comentários sobre jogadores cujas carreiras não se enveredavam por caminhos promissores e vitoriosos.
Atualmente, de acordo com a entrevistada, o cenário é outro.
“Como eu trabalhei com futebol nos últimos anos, acabei conhecendo muita gente. Hoje em dia, um monte de família de jogador já me ligou, dizendo: ‘Você tá aí? Tem negócio?'”, disse.
Marina também lembrou que a missão de Cristiano Ronaldo na Arábia Saudita vai muito além de seus compromissos dentro de campo com a camisa do Al-Nassr.
“Isso [jogar futebol] é a menor das coisas, porque a gente sabe que é a pontinha do iceberg. Cristiano Ronaldo foi extremamente corajoso, ousado, e eu acho que foi ele que mudou o cenário [do esporte na Arábia Saudita]. O mérito é sem dúvida dele e do movimento de carreira que ele fez. Ele sabia que essa Copa [do Mundo de 2034] viria. Ele é o embaixador da Copa. Ele foi lá para levar essa Copa para a Arábia Saudita, e ela veio. Só alguém com a grandeza dele de imagem, dessa força toda, poderia ter feito isso”, avaliou.
Mulheres
Além da questão do uso do véu, mencionada no início da entrevista concedida a Erich Beting e Gheorge Rodriguez, Marina Nishitani comentou sobre suas impressões a respeito do tratamento dispensado às mulheres pelos sauditas com quem conviveu.
“Vou te dizer uma coisa surpreendente: eles são muito mais respeitosos com a mulher do que, por exemplo, o brasileiro. Todos os meus funcionários lá são extremamente carinhosos, gentis, cuidadosos. Conheci muitas mulheres em posições incríveis. Trabalhei com uma princesa espetacular, extremamente inteligente, poderosa, empoderada. Botou muito homem pra sentar no ‘cantinho do pensamento'”, afirmou.
Ela também falou sobre os avanços nos direitos femininos ocorridos na Arábia Saudita nas últimas décadas.
“Existem coisas que me deixaram surpresa. A faculdade para homens e mulheres é separada. Mas, se não me engano, essa faculdade para mulheres foi inaugurada em 1975, 1980. Se você quiser olhar o copo meio cheio, as mulheres já estão podendo ir à faculdade. Têm acesso ao estudo. Sempre dizem que qualquer transição é lenta. As mulheres puderam dirigir há quanto tempo? Lá, não dirigiam. De dez anos para cá, passaram a poder dirigir. Então, é isso, eles estão em um processo”, analisou.
Muito além dos camelos
Entre os objetivos dos investimentos maciços em eventos esportivos feitos pelo governo saudita, está a estratégia de impulsionar o turismo para que o setor, em um futuro próximo, possa ajudar a superar a dependência do petróleo, atualmente o principal produto de exportação do país.
“Tive uma conversa com uma pessoa lá, que é o vice-presidente, e ele falou isso, e eu gostei muito: ‘Marina, a gente não aguenta mais que o pessoal pense em Arábia Saudita e em camelo. A gente não é camelo’. O futebol dará oportunidade para mostrar o país”, contou.
Segundo ela, a intenção do governo saudita é desenvolver o país e apresentar seus atrativos turísticos ao mundo. O esporte, incluindo Fórmula 1, tênis, golfe e o próprio futebol, foi uma ferramenta escolhida para atrair a atenção do público internacional.
“Mostrar que, culturalmente, eles estão preparados para essa mudança e que têm lugares maravilhosos. O Mar Vermelho, se eu mostrar umas fotos para vocês, é tão bonito quanto as Maldivas. Você não imagina a coisa linda que é. E é só um pedaço. Eles estão desenvolvendo áreas de montanhas, eles estão fazendo projetos de ilhas flutuantes, é lindo”, afirmou.
Formada em Jornalismo, Marina Nishitani possui experiência na realização de grandes eventos esportivos no Brasil, trajetória iniciada nos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro (RJ).
A partir de 2019, ela começou o trabalho na Arábia Saudita, colaborando com a organização de eventos de projeção internacional no país do Oriente Médio. Atualmente, atua, inclusive, com o Ministério do Turismo saudita.
Assista abaixo à entrevista concedida por Marina Nishitani na íntegra, transmitida pelo canal da Máquina do Esporte no YouTube: