A década de 1990 ficou marcada por uma verdadeira revolução no mercado de chuteiras. Foi nessa época que o calçado abandonou o tradicional preto e os desenhos padronizados, para dar um lugar a uma profusão de cores e estilos.
Hoje, as chuteiras coloridas e estilosas se tornaram um elemento comum nos campos de futebol, mundo afora. Há cerca de três décadas, porém, elas eram novidade e chamavam atenção.
A popularização desse conceito se deve, em grande parte, à estratégia agressiva adotada pela norte-americana Nike, que em meados dos anos 1990, passou a investir no esporte mais popular do planeta.
Foi assim que surgiu a Nike Mercurial Vapor R9, utilizada pelo atacante Ronaldo Fenômeno, na Copa de 1998.
Mas foi em 2000 que a empresa deu seu grande salto nesse segmento, com o lançamento da linha Total 90 (T90), que tinha como embaixadores ídolos do futebol mundial como Roberto Carlos, Fernando Torres, Wayne Rooney, Ronaldinho Gaúcho e mesmo Lionel Messi, até 2005, antes de ele fechar com a Adidas.
Depois de permanecer vários anos inativa, a T90 foi recentemente revisitada pela Nike, aproveitando a tendência irrefreável de nossos tempos, de apelar à nostalgia para fomentar o consumo. Foi então que a gigante do mercado esportivo viu-se em meio a uma batalha judicial, que pode ocasionar a ela um prejuízo sem precedentes.
Descuido custou caro
As regras de propriedade intelectual costumam variar, de país para país. De um modo geral, porém, as legislações apresentam algumas características em comum, como a necessidade de os registros terem de ser renovados de tempos em tempos.
E foi justamente nesse ponto que a Nike se descuidou, deixando que a patente da T90 expirasse. Em meio a esse vácuo, a empresa Total90 LLC, sediada no estado da Lousiana, aproveitou para registrar o nome.
“Quando uma empresa do porte da Nike deixa um registro essencial caducar, abre-se um flanco perigoso: terceiros podem se apropriar de um ativo que deveria estar devidamente resguardado. Trata-se de uma falha clássica de governança de marcas que, inevitavelmente, deságua no contencioso. A companhia acaba na situação desconfortável de ter que justificar o direito de usar o próprio nome que ela mesma projetou globalmente”, explica Gustavo Biglia, sócio do Ambiel Bonilha Advogados e especialista em direito societário.
De acordo com o portal Footy Headlines, a Total90 LLC resolveu processar a Nike na Justiça dos Estados Unidos, depois que a gigante relançou a linha T90, especialmente as edições limitadas do calçado T90 Laser e coleções “lifestyle”.
A situação se torna ainda mais grave para a Nike, porque a empresa preparou relançamentos da linha T90 em diversos mercados globais.
Isso inclui produtos voltados ao ciclo da Copa do Mundo de 2026, que terá os Estados Unidos como uma das sedes, além da parceria com a marca Palace, que usará a sigla P90, numa alusão à T90.
Tudo isso agora está ameaçado, já que a Total90 LLC acusa a Nike de violar sua propriedade intelectual. Se a companhia da Lousiana vencer a batalha nos tribunais, a criadora da T90 terá de cancelar os lançamentos e amargar prejuízos em inúmeros mercados.
“Casos como esse têm repercussões reputacionais importantes. A perda de controle sobre um símbolo cultural e esportivo como a Total 90 enfraquece a percepção de solidez na gestão de ativos intangíveis da empresa”, avalia Giovanna Vasconcellos, do Ambiel Bonilha Advogados e especialista em propriedade intelectual.
Na opinião da advogada, deixar expirar um registro de patente equivale a “‘entregar de bandeja’ a terceiros a chance de explorar um ativo que deveria estar integralmente resguardado”.
Precedentes
A Nike não é o primeiro grande conglomerado dos Estados Unidos a esbarrar em questões de propriedade intelectual.
Quando o Burger King iniciou sua expansão na Austrália, em 1971, descobriu que a marca já havia sido registrada localmente por um cidadão norte-americano, que, ao chegar ao país da Oceania, notou que o nome da rede de fast food estava livre nos órgãos de propriedade intelectual.
Desde então, Burger King opera em território australiano como a denominação de Hungry Jack’s, numa referência ao franqueado Jack Cowin, responsável por levar as operações do grupo para o país.
Nem sempre, porém, a existência de um registro de marca é capaz de barrar o sucesso de um produto. Um caso famoso envolve a brasileira Gradiente e a gigante de tecnologia Apple, na disputa ainda inconclusa pela controle do nome do celular mais badalado do mundo.
Por muito tempo, a Gradiente liderou o mercado de eletroeletrônicos no Brasil, especialmente nas áreas de som e vídeo. Ela chegou a deter a marca Philco no mercado nacional e também ser parceira da Nintendo, na comercialização de consoles.
O crescimento da empresa, porém, deu-se em meio a um contexto de restrição às importações. A partir da década de 1990, com a abertura econômica e o Plano Real, que, nos anos iniciais, equiparou a cotação da moeda local ao dólar, a Gradiente passou a sofrer com a concorrência dos produtos importados.
Em 2000, a companhia brasileira (atual IGB Eletrônica) deu entrada no pedido de registro da marca Gradiente Iphone, junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), bem antes, portanto, do lançamento do celular da marca da maçã.
O Iphone da Gradiente seria um celular com acesso à internet e foi apresentado durante a feira de telecomunicações Telexpo, em abril daquele ano.
Porém, duas semanas antes de a empresa dar entrada no pedido de registro, a TCE Indústria Eletrônica da Amazônia já havia solicitado ao Inpi a exclusividade no uso da palavra Iphone.
Dessa forma, o requerimento da Gradiente acabou sendo inicialmente arquivado. Mas em 2006, como a TCE não havia comercializado nenhum produto chamado Iphone, seu registro acabou caducando, permitindo que o pedido da concorrente voltasse a ser analisado.
O requerimento da Gradiente foi deferido em 2008, um ano depois de a Apple apresentar seu iPhone ao mundo.
Em 2012, Iphone e iPhone eram comercializados ao mesmo tempo no país, embora a os holofotes de mídia e o desejo do público estivessem todos voltados ao modelo da maçã. Ainda assim, em 2013, a Apple pediu à Justiça que declarasse nulo o registro da Gradiente, sob o argumento de que ele confundiria os consumidores.
A companhia também argumentava que usava o termo iPhone para se referir a celulares desde 1998, embora, à época, não tivesse lançado nenhum produto nessa área. Ainda alegou que a Gradiente já havia tentado registrar expressões genéricas da área de tecnologia como 3G e DVD.
A IGB Eletrônica, por sua vez, apelou ao princípio da anterioridade, ou seja, de que registrou primeiro a marca junto aos órgãos competentes do país.
Em 2023, o caso começou a ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A Apple conseguiu cinco votos a favor, enquanto três ministros penderam para o lado da Gradiente.
Apesar do placar, ainda não é possível afirmar que a disputa foi resolvida, porque não foi publicado um acordão da decisão.
Enquanto isso, em maio deste ano a empresa brasileira conseguiu garantir no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o direito de seguir usando a marca Gradiente Iphone.
Vale lembrar que, caso o STF confirme a sentença em favor da Apple, essa decisão do STJ será derrubada.
