Nos últimos dias, quem acompanha futebol foi surpreendido com a notícia de que, como consequência de uma decisão do tribunal pleno do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD), o atacante Gabigol, do Flamengo, estaria suspenso por dois anos, a contar de 8 de abril de 2023, data em que houve a coleta de seus exames.
De acordo com as informações que foram divulgadas, não foi identificada nenhuma substância proibida nas amostras de sangue e de urina do jogador. Na realidade, a punição se deu por ele ter, supostamente, deixado de cooperar com a coleta.
LEIA MAIS: Especialistas: Punição afasta Gabigol das marcas e gera prejuízo ao Flamengo
Segundo noticiam o Flamengo e a assessoria do próprio Gabigol, o caso parece estar longe de se encerrar. Afinal, a intenção é recorrer à Corte Arbitral do Esporte (CAS), inclusive pedindo efeito suspensivo da suspensão, mesmo porque, caso ela seja mantida, o atleta não atuaria mais pelo Flamengo até o término de seu contrato atual com o clube, vigente até dezembro de 2024.
Convém esclarecer, desde já, que não há como opinar quanto ao desfecho do caso, mesmo porque não é possível, ao público geral, consultar seus documentos. Até o momento da elaboração desta coluna, sequer a decisão foi divulgada. Apesar disso, esse caso suscita pontos interessantes de reflexão, que já podem ser abordados.
Nesta coluna, pretendo expor o conceito de atleta com dimensão internacional e suas consequências para eventual procedimento antidopagem; as principais obrigações impostas ao jogador no momento da coleta do exame de sangue ou de urina e as consequências ao seu descumprimento; e, por fim, o termo inicial de eventual suspensão por infração antidopagem.
Pois bem. Foi amplamente noticiado pela mídia que o caso do atacante Gabigol foi julgado pelo tribunal pleno do TJD-AD, sendo possível, portanto, o recurso para o CAS. A princípio, isso pode causar dúvidas.
Afinal, o TJD-AD é composto por três câmaras e por um tribunal pleno. Em regra, os casos são julgados por uma das câmaras, cabendo, então, recurso ao tribunal pleno. Por que então o caso de Gabigol foi julgado, de forma direta, no tribunal pleno, cabendo recurso ao CAS?
Para a resposta da pergunta, convém expor o conceito, utilizado pelas regras antidopagem, de atleta de nível internacional. O enquadramento nesse conceito é diferente a depender da modalidade esportiva do atleta.
No entanto, para os jogadores de futebol, conforme o Regulamento Antidopagem da Fifa, são considerados atletas de nível internacional aqueles que participam regularmente de competições internacionais. No caso de Gabigol, tendo em vista o histórico do jogador na Copa Libertadores, não é difícil enquadrá-lo nesse conceito.
Aos jogadores de nível internacional, é possível optar por um julgamento extraordinário, que já se inicie no tribunal pleno e que possa ser submetido ao CAS em grau recursal. Em outras palavras, a tais atletas, é concedida a possibilidade de procedimento com dimensão transnacional, que poderá ser julgado por uma câmara arbitral estrangeira.
Depreende-se, assim, pelo que foi divulgado, que Gabigol optou por ser submetido ao procedimento extraordinário, muito provavelmente para que, em caso de decisão desfavorável, pudesse recorrer ao CAS.
Outro ponto que levantou dúvidas (e suscitou piadas e memes na internet) diz respeito a qual teria sido, supostamente, a infração cometida por Gabigol. Nesse sentido, os dados divulgados não são claros, havendo, inclusive, possível divergência que poderá ser abordada pela defesa do jogador.
De qualquer forma, fato é que as regras transnacionais antidopagem exigem determinadas obrigações dos atletas no momento da coleta de amostras de urina e/ou de sangue. Tais exigências estão previstas no Padrão Internacional de Testes e Investigações, da Agência Mundial Antidopagem, e devem ser informadas ao jogador antes do início da coleta.
No caso das amostras de urina, exige-se que a coleta ocorra perante um agente antidopagem do mesmo sexo do jogador, que deverá observar claramente a amostra saindo do corpo do atleta. Além disso, o jogador deverá lacrar o recipiente da coleta na frente do agente antidopagem.
Apesar de constrangedora, a medida se volta a assegurar que não haverá nenhuma adulteração na amostra coletada, bem como que ela, efetivamente, adveio do atleta testado.
Recomenda-se, ainda, que o atleta lave as mãos antes do exame, para evitar quaisquer contaminações.
Já no que se refere aos exames de sangue, o jogador deve permanecer sentado, com os pés no chão, por pelo menos 10 minutos antes da coleta.
Caso essas regras não sejam observadas, cabe ao agente antidopagem reportar a situação, registrando-a por meio de um documento intitulado Revisão de Uma Possível Falha de Cumprimento.
Passa-se a examinar, então, se, ao descumprir o protocolo, o atleta tinha por intenção fraudar qualquer parte do processo antidopagem, em que se enquadra na hipótese do Art. 122 do Código Brasileiro Antidopagem.
Sendo constatada a fraude ou a tentativa de fraude, parte-se de uma suspensão-base de quatro anos. Há, porém, duas hipóteses de redução. A primeira delas diz respeito à pessoa protegida ou ao atleta de nível recreativo, em que a suspensão será de no máximo dois anos.
Já a segunda, em que parece ter se enquadrado Gabigol, refere-se à possibilidade do infrator poder comprovar circunstâncias excepcionais que justifiquem a redução, para um período entre dois e quatro anos. Até o momento, não se sabe qual foi o argumento para reduzir a sanção aplicável ao atleta para dois anos, podendo-se presumir, porém, que envolveu o entendimento de que a conduta, apesar de infratora, foi de baixa gravidade.
Por fim, muitos se questionaram por qual razão a sanção foi imposta de forma retroativa. Em regra, a suspensão passa a vigorar a partir do momento em que é imposta ou de que é aceita pelo jogador, em casos, por exemplo, de confissão. De forma excepcional, porém, a sanção pode retroagir ao momento da coleta quando houver atrasos significativos no procedimento antidopagem sem que isso seja imputável ao jogador. Tendo em vista, portanto, que as amostras em questão foram coletadas em abril de 2023, presume-se que se entendeu que o julgamento teria demorado de forma significativa, sem que isso tenha sido causado por Gabigol.
Alice Laurindo é graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em que cursa atualmente mestrado na área de processo civil, estudando as intersecções do tema com direito desportivo; atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados; é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; é membra da IB|A Académie du Sport; e escreve mensalmente na Máquina do Esporte