Ronaldo saiu do Cruzeiro dois anos depois de começar uma de suas mais malucas aventuras dentro do futebol brasileiro. A transferência do controle do clube para o empresário Pedro Lourenço é emblemática.
Boa parte da torcida cruzeirense respirou aliviada com a troca de comando. Outra parte ficou triste com a mudança, mas guarda no fundo um sentimento de que as coisas finalmente possam voltar a brilhar.
Mas por que isso acontece?
Ronaldo chegou com a promessa de ser o “salvador da pátria” do Cruzeiro. Amargando a terceira temporada seguida na Série B, o clube era, em dezembro de 2021, o primeiro grande do Brasil a aderir à recém-promulgada Lei das SAFs.
Criou-se ali o cenário perfeito para que comprovássemos a tese de que a solução para o futebol era a lei.
Ronaldo chegou para colocar o Cruzeiro nos eixos e recolocá-lo no topo. Um time que havia quebrado financeiramente por ter promovido, cinco anos antes, uma era dourada, com gastança desenfreada de dinheiro, mas regada a títulos nacionais e um protagonismo poucas vezes visto por um time de Minas Gerais no futebol brasileiro.
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Mas Ronaldo chegou com um discurso que começou a alarmar o torcedor. O clube estava na UTI, não seria da noite para o dia que as coisas mudariam. O cenário ficou mais nebuloso quando o goleiro-bandeira Fábio não teve seu contrato renovado, e o maior ídolo do time, símbolo do torcedor dentro de campo, foi embora antes mesmo da temporada 2022 começar.
Desde aquele momento, a relação entre Ronaldo e a torcida do Cruzeiro passou a ser de amor e ódio. O retorno à Série A foi importante para sepultar o episódio Fábio. Mas a primeira temporada de regresso à elite devolveu o sentimento de insatisfação.
O Cruzeiro penou para se manter na primeira divisão, algo que o próprio clube já havia estabelecido como meta para a temporada. Trocas constantes de treinadores viraram uma regra dentro da Toca da Raposa, o que levou àquela impressão de que, por mais que o discurso fosse de austeridade e pés no chão, a prática era a mesma de outros clubes. O time não se acerta em campo, muda-se o comando.
Veio 2024, e praticamente nada mudou. O Cruzeiro seguiu perdendo o Estadual e mudando de treinador. A torcida, cobrando o time dentro de campo, viu jogadores que vieram para solucionar problemas serem vaiados e negociados para outros times. E, no fim, Ronaldo decidiu pedir as contas.
Ronaldo e Pedro: Do 8 ao 80
A chegada de Pedro Lourenço, dono da rede Supermercados BH e por isso mesmo conhecido pelo apelido de Pedrinho BH, muda radicalmente a perspectiva do Cruzeiro para os próximos anos.
Sai a SAF “pés no chão” de Ronaldo e entra a SAF “pé no acelerador” de Pedrinho.
O discurso de austeridade e gestão racional dos gastos será substituído pelo de protagonismo a qualquer custo. Contratações fabulosas, time que seja competitivo e nenhuma preocupação em fechar o ano com o saldo positivo no caixa devem ditar os próximos passos do Cruzeiro dentro do futebol.
A mídia esportiva e a torcida abraçaram o discurso de que o Cruzeiro é enorme e precisa brilhar. Não querem saber o preço a se pagar por isso. Afinal, o clube é de Pedrinho BH, e ele faz o que quiser com isso.
É curioso notar que, quando a Lei das SAFs foi promulgada, boa parte da mídia e dos profissionais da bola disseram que ela viria para “livrar” o futebol brasileiro da incompetência dos nossos dirigentes.
Vendeu-se o discurso de que a lei tiraria o poder de conselhos deliberativos e daria a empresas e empresários a capacidade de investir racionalmente e melhorar como um todo o ecossistema do futebol.
Desde sempre alertamos, aqui na Máquina do Esporte, que virar empresa não é garantia de sucesso no futebol. Esportivo ou econômico. A venda da SAF do Cruzeiro de Ronaldo é emblemática. O mercado está ansioso pela chegada de um gastador, mais do que de um gestor. Não se quer uma SAF que controle custos e faça o projeto se sustentar com as próprias capacidades de geração de receita. O que se espera é que venha um gastador sem escrúpulos que contrate os melhores para ter um time campeão. Sem se preocupar se o clube gera receita suficiente para ter aquele desempenho.
A saída de Ronaldo mostra que o futebol brasileiro caminha para repetir a fórmula que fracassou em Portugal e na Itália. Os clubes seguirão sendo entidades sem qualquer noção de responsabilidade fiscal. Os maus dirigentes poderão até ser bem-sucedidos dentro de campo, mas continuarão quebrando seus clubes.
Quem paga a conta nessa história toda? A torcida, que vê sua fonte de prazer ser depenada por gente que não sabe cuidar do produto.
Não é com a SAF que o futebol terá salvação. Só seremos melhores quando, de fato, houver no comando da indústria do futebol gente preocupada em transformar todo o sistema em um modelo saudável de geração e divisão de receitas.
Não é Ronaldo quem não está pronto para ser dono de um clube de futebol no Brasil. É o mercado brasileiro que não entendeu, ainda, como funciona, de fato, um clube-empresa.
A utopia das SAFs começa a ir embora de braços dados com o Fenômeno.
Erich Beting é fundador e CEO da Máquina do Esporte, além de consultor, professor e palestrante sobre marketing esportivo