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Conheça as regras da Fifa sobre transferência internacional de atletas menores de idade

Regulamento da entidade sobre o tema é bastante rígido, mas possui seis exceções

Estêvão só pôde deixar o Palmeiras e se apresentar ao Chelsea quando completou 18 anos de idade - Divulgação / Chelsea

Para quem acompanha futebol, não causa nenhum espanto a afirmação de que jogadores talentosos vêm se destacando antes mesmo de completar 18 anos de idade. Com efeito, não é raro que, ainda jovens, atletas ascendam das categorias de base para a equipe principal e, muitas vezes, virem peças importantes do elenco de seus times.

Quando isso acontece, também é comum que esses talentos despertem o interesse de equipes estrangeiras, que querem garantir o próximo destaque brasileiro em tempo de, muitas vezes, terminar sua formação esportiva. No entanto, o regulamento da Federação Internacional de Futebol (Fifa) não permite, salvo exceções taxativas, a transferência internacional de atletas menores de idade.

Esta coluna se dedica, então, ao referido tema, de modo a expor a regra geral da Fifa acerca da transferência de atletas menores de idade e as hipóteses de exceção.

RSTP

O regulamento da Fifa que trata de transferências, intitulado Regulamento sobre o Status e a Transferência de Jogadores (RSTP), possui como um de seus princípios gerais a proteção aos atletas menores de idade. Como consequência disso, em regra, só são permitidas transferências internacionais de jogadores que possuam mais de 18 anos de idade.

Esclareça-se, nesse sentido, que é considerada transferência internacional aquela que se dá entre clubes filiados a associações nacionais diversas. É o caso, por exemplo, da cessão de um jogador de um clube brasileiro, ligado à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a uma agremiação italiana, pertencente à Federação Italiana de Futebol (FIGC). O critério é, portanto, a sede dos clubes, e não a nacionalidade do atleta.

Essa vedação se aplica para qualquer atleta de futebol ou futsal, seja amador ou profissional, homem ou mulher. Dessa forma, não diz respeito apenas à transferência propriamente, conceito que pressupõe vínculo profissional do jogador, aplicando-se também ao mero registro, por uma agremiação estrangeira, de um atleta menor de idade.

A própria Fifa justifica essa regra em razão dos desafios que um atleta menor de idade pode enfrentar ao se mudar para outro país, afastando-se de seus amigos e, muitas vezes, de sua família, sendo, ainda, exposto a uma nova cultura. Entende-se, assim, que retirar o jogador de sua rede de apoio tão cedo pode torná-lo excessivamente dependente do clube, além de lhe imputar uma pressão incompatível com esse momento da vida.

É justamente em razão dessa regra que há casos emblemáticos recentes, em que a agremiação estrangeira ajustou a transferência futura de um atleta e aguardou meses para que ele efetivamente chegasse no clube. Foi o que ocorreu, por exemplo, com os atacantes Vinicius Júnior, Rodrygo e Endrick, em suas contratações pelo Real Madrid, e com o também atacante Estêvão, em sua contratação pelo Chelsea.

Exceções

Há, porém, seis exceções em que a Fifa autoriza a transferência internacional ou o registro por uma agremiação estrangeira de um atleta menor de idade.

A primeira delas é quando o jogador nunca foi registrado por qualquer clube e está morando há pelo menos cinco anos no país em questão.

A segunda diz respeito a um atleta que já vá se mudar temporariamente para outro país por motivos acadêmicos, como a realização de um intercâmbio ou um curso temporário. Nesses casos, admite-se a vinculação do jogador a uma agremiação estrangeira que seja amadora e por um período que não ultrapasse um ano.

A terceira, por sua vez, é quando o jogador se muda por questões humanitárias, o que abarca refugiados, pessoas perseguidas por motivos de raça, religião, nacionalidade ou por pertencimento a um determinado grupo social ou político, além de atletas que busquem asilo político ou cuja sobrevivência no país de origem esteja ameaçada em geral.

Em tais casos, exige-se que o atleta possua autorização, ao menos temporária, para residir em seu novo país. Também deve ser demonstrado que o jogador ou seus pais possua(m) status de refugiado ou de pessoa(s) protegida(s) ou, ainda, que tenha(m) formalizado pedido de asilo.

Destaque-se que, na edição atual do RSTP, há a previsão de que, para atletas que residam na Ucrânia e queiram se vincular a uma agremiação estrangeira, há a presunção de que esses requisitos foram cumpridos.

Já a quarta exceção diz respeito a regiões fronteiriças. Autoriza-se a transferência quando o jogador reside em um local que possui fronteira nacional em até 50km, contanto que o clube em questão também esteja a até 50km dessa fronteira. Nesses casos, a distância entre a casa do atleta e o clube deve ser de até 100km, de modo que o jogador continue a residir no mesmo local. Exige-se, ainda, que ambas as associações nacionais concordem com a situação.

A quinta hipótese autoriza a transferência de atletas que possuam entre 16 e 18 anos de idade, desde que os clubes envolvidos sejam de associações localizadas no mesmo país ou sejam de associações localizadas em um país-membro da União Europeia ou do Espaço Econômico Europeu. Em tais casos, exige-se que o novo clube comprove que garante ao jogador treinamento e formação esportiva adequados; educação, de modo a lhe possibilitar perseguir outra carreira caso não se torne ou não siga sendo atleta profissional; e boas condições em geral, o que inclui acomodação e algum tipo de mentoria.

Saliente-se, ainda, que esta exceção foi incorporada ao RSTP em razão da liberdade de circulação imposta pelas normativas da União Europeia. Com o passar do tempo, também foi estendida para países que possuem acordos bilaterais com a União Europeia e que também garantem a livre circulação de trabalhadores.

A sexta e última exceção diz respeito a atletas cujos pais se mudam para o país em que o novo clube está localizado por razões que não sejam relacionadas ao futebol. A ideia geral dessa hipótese é a de que o jogador já se mudaria de qualquer forma, não devendo ser impedido de continuar sua carreira ou sua formação esportiva.

Pensa-se, por exemplo, em casos em que o pai ou a mãe do atleta (ou os dois) tenham recebido uma proposta para trabalhar no exterior e devem se mudar por questões de saúde ou decidem se juntar a familiares que já residem no país em questão. É importante ressaltar que a mudança não pode estar ligada à atividade esportiva do jogador, mas pode se relacionar com o futebol, caso um dos pais também atue como atleta ou exerça outra atividade relacionada ao esporte, como técnico ou dirigente.

Essa situação deve, porém, ser analisada com cuidado, pois há casos em que clubes e atletas buscam fraudar a mudança dos pais, como uma forma de possibilitar a transferência internacional do jogador antes que ele complete a maioridade. Em razão disso, exige-se que o(a) atleta seja capaz de demonstrar que a mudança dos pais não está relacionada com a carreira ou a formação esportiva dele(a), o que pressupõe uma análise cautelosa de cada caso.

Considera-se, para tanto, critérios como: a anterioridade de uma eventual proposta de emprego dos pais; o tempo entre o jogador chegar no novo país e se vincular ao clube; uma eventual relação entre o clube de origem do jogador e sua nova agremiação; postagens em redes sociais; as origens étnico-culturais da família do atleta; as línguas faladas pelo atleta e por seus pais; e os preparativos adotados pelos pais do atleta para a referida mudança.

Conclusão

Em todas essas hipóteses de exceção, salvo quando o jogador possuir menos de 10 anos de idade, exige-se que o órgão específico da Fifa autorize o registro e/ou a transferência.

O pedido deve ser realizado pela associação nacional que queira registrar o jogador, como, por exemplo, a Federação Italiana de Futebol no exemplo dado no início desta coluna, de transferência de um clube brasileiro para um clube italiano. É interessante apontar, inclusive, que a Fifa possui um manual explicando como esse pedido deve ser realizado e quais documentos devem ser apresentados.

Vale salientar, ainda, que, na análise dessas solicitações, realiza-se uma interpretação restritiva das regras, de modo a evitar seu escopo de aplicação.

Ademais, caso haja violação às regras da Fifa sobre transferência e registro de um atleta menor de idade, o clube pode ser punido, o que pode envolver, por exemplo, a proibição do registro de novos jogadores por um determinado período. É o que ocorreu, inclusive, em um caso conhecido que envolveu o Chelsea, em 2019.

Percebe-se, portanto, que a vedação à transferência internacional ou ao registro por uma agremiação estrangeira de atletas menores de idade é um dos pilares da Fifa. Assim, apenas são admitidas exceções em que o jogador possa permanecer residindo em sua casa; a mudança do jogador ao referido país não se dê em razão de sua carreira ou de sua formação esportiva; ou o deslocamento já seja permitido por diretrizes da União Europeia e/ou do Espaço Econômico Europeu.

O artigo acima reflete a opinião do colunista e não necessariamente a da Máquina do Esporte

Alice Laurindo é mestra em Processo Civil e bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), em que é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo. Além disso, atua como advogada no escritório Bichara e Motta Advogados, com foco nas áreas de Direito Desportivo, Direito do Entretenimento e Contencioso Cível, e é membra da IB|A Académie du Sport e do Laboratório de Pesquisa da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD LAB)

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