Os dados divulgados recentemente pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), em parceria com o Instituto Nexus, trazem um conforto perigoso para o mercado esportivo brasileiro. Saber que o futebol segue como a paixão nacional indiscutível pode dar a sensação de dever cumprido aos gestores e dirigentes. Mas, sob a ótica fria dos negócios, essa estatística deveria soar menos como um troféu e mais como um alarme de ineficiência operacional grave.
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Para entender o tamanho da receita que estamos deixando na mesa, precisamos cruzar os números do estudo com a realidade financeira dos clubes. O cenário é de um contraste brutal:
- 73% dos brasileiros afirmam acompanhar futebol;
- 47% assistem a pelo menos um jogo por semana (usuários ativos);
- 45% consomem notícias do clube do coração diariamente nas redes sociais;
- Mas apenas 19% costumam ir aos estádios;
- E apenas 20% costumam comprar produtos oficiais.
Esses números desenham um funil de vendas “furado”. Temos um produto com penetração massiva e recorrência semanal, mas com uma incapacidade de conversão direta de nicho. Em qualquer outra indústria, do varejo ao streaming, falhar em monetizar 80% da sua base ativa de clientes seria motivo de gestão de crise. No futebol, normalizamos esse desperdício porque nosso modelo histórico de negócio foi viciado na escassez: vender os poucos lugares da arquibancada para quem paga mais.
A armadilha do modelo “Matchday-Centric”
A pesquisa escancara um vício estratégico: os clubes brasileiros insistem em operar como empresas de eventos, focadas quase exclusivamente nos 90 minutos de jogo, quando o comportamento do consumidor já exige que operem como empresas de mídia e varejo 365 dias por ano.
Ao concentrar esforços de gestão de relacionamento com o cliente (CRM), marketing e programas de sócio-torcedor na venda de ingressos e descontos para o estádio, as agremiações ignoram a economia digital, que é onde reside a escala infinita. O estádio tem teto de receita e limitação geográfica; o digital, não.
Quando vemos que quase metade da população (47%) consome o produto semanalmente, mas o clube só fatura sobre a minoria que atravessa a catraca, estamos diante de um erro grave de oferta e demanda. O torcedor “do sofá”, que mora a 2 mil km da arena ou não tem tíquete médio para o ingresso, não é um “torcedor de segunda classe”. Ele é um cliente com alta propensão de consumo que está sendo sistematicamente ignorado por falta de portfólio.
Hoje, o torcedor quer pertencer, mas o clube só vende acesso físico. Se ele não pode ir ao jogo, o clube praticamente “demite” esse cliente da sua régua de relacionamento.
A terceirização da inteligência e o risco da irrelevância
A profundidade da crise aumenta quando olhamos para a propriedade do relacionamento. Se 45% dos torcedores se informam pelas redes sociais, mas não estão integrados a um “Data Lake” proprietário do clube, esse ativo não pertence à instituição.
Estamos vivendo um paradoxo perigoso: as big techs, como Google e Meta, as plataformas de streaming e as casas de apostas, estas mais agressivamente, conhecem o comportamento do torcedor brasileiro muito melhor do que os próprios clubes de futebol.
Ao não converter seguidores e engajamento social em cadastros proprietários (“First-Party Data”), os clubes atuam como meros geradores de tráfego gratuito (ou muito barato) para plataformas terceiras. O clube arca com o custo de produção do espetáculo, paga a folha salarial astronômica, gera a emoção, mas quem monetiza a atenção e o dado comportamental é o intermediário.
Isso cria uma fragilidade comercial a longo prazo. O mercado publicitário está migrando rapidamente de verbas de “visibilidade” (o logotipo estático na camisa) para verbas de “performance” (conversão de vendas). Sem dados qualificados para entregar segmentação precisa aos patrocinadores, os clubes perdem competitividade para a mídia programática.
Exceções que provam a regra
É justo apontar que existem movimentos de maturidade que tentam furar essa bolha. O Fortaleza tornou-se referência de eficiência ao verticalizar seu varejo com marca própria, conseguindo capturar dados e receitas de torcedores em todo o Nordeste, independentemente da ida ao Castelão.
No Rio de Janeiro, o Flamengo avança com iniciativas como o Fla-Chip. Ao entrar no setor de telecomunicações, o clube não apenas criou uma nova linha de receita recorrente, mas inseriu a marca na rotina diária do torcedor (conectividade) e gerou um ponto de coleta de dados valiosíssimo fora do ambiente esportivo. Essa estratégia, somada aos investimentos em “Digital Asset Management” (DAM) (Gestão de Ativos Digitais, em tradução livre) e estruturação de “Data Lakes”, mostra um caminho em que o clube tenta retomar o controle sobre a inteligência do seu consumidor, parando de depender apenas da venda de ingressos.
De “Clube Social” para “Media House”
A pesquisa da CBF é, no fundo, um ultimato para a modernização das receitas. O modelo associativo tradicional tornou-se obsoleto para a demanda de consumo de 2025.
A análise sugere que o clube precisa se transformar para ser uma “Media House” com vertical de varejo forte. Precisamos aumentar a Receita Média por Usuário (Arpu) extraindo valor de quem nunca pisará no estádio, e isso se faz com produtos digitais: comunidades exclusivas, conteúdo de bastidores monetizável, fantasy games proprietários, tokens de utilidade ou programas de associação (“membership”) focados em benefícios digitais e experiências, não em descontos de ingressos.
O estudo do Instituto Nexus prova que a demanda pelo futebol brasileiro é elástica e resiliente. O problema é que o mercado continua tentando vender uma solução analógica (o lugar na arquibancada) para um problema digital (a necessidade de conexão, conteúdo e pertencimento).
Enquanto celebrarmos o alcance de 73% sem transformar essa massa em dados acionáveis e receita recorrente, continuaremos sendo gigantes em popularidade, mas anões em eficiência financeira.
O dinheiro está na mesa; falta a coragem e a inteligência de dados para buscá-lo.
O artigo acima reflete a opinião do colunista e não necessariamente a da Máquina do Esporte
Samanta Vicentini é especialista em Gestão de Relacionamento com o Cliente (CRM) e estratégias de relacionamento e fidelização de fãs. Com passagens nos programas de sócio-torcedor de Flamengo, Palmeiras e Vasco, acumula experiência no uso de dados para fortalecer o vínculo entre clubes e torcedores, gerando recordes de retenção e faturamento
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