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As questões jurídicas que envolvem a demissão de um técnico de futebol

Rescisão do contrato de trabalho de um técnico de futebol, além de impactar profundamente o planejamento e a atuação esportiva das agremiações, traz reflexos jurídicos importantes que precisam ser entendidos e respeitados

Ramón Díaz foi o técnico do Corinthians nas primeiras quatro rodadas do Brasileirão, mas acabou demitido - Rodrigo Coca / Agência Corinthians

Muito embora a Série A do Campeonato Brasileiro de Futebol Masculino de 2025 ainda esteja no início, diversos clubes já decidiram demitir seus técnicos. Do ponto de vista esportivo, o tema foi recentemente abordado pelo ex-jogador Diego Ribas, também colunista da Máquina do Esporte. Esta coluna, porém, tratará dos impactos jurídicos da questão, seja na relação entre o treinador dispensado e seu ex-clube ou no registro do novo profissional escolhido.

É certo que a mídia esportiva tem noticiado de forma atenta algumas dessas situações. Apesar disso, convém destacar, desde já, que este texto não abordará casos específicos, mesmo porque, a despeito do interesse midiático, detalhes importantes das operações seguem não sendo públicos. A intenção será, então, abordar aspectos jurídicos gerais da troca de um treinador de futebol por um clube brasileiro.

O primeiro aspecto importante é que o técnico de futebol, assim como o atleta, possui necessariamente um contrato de trabalho por um prazo determinado. No caso do treinador, a contratação deve ser feita por no mínimo seis meses e no máximo dois anos.

Tendo em vista que não há previsão específica de multa por rescisão na legislação esportiva, aplica-se a regra geral dos demais trabalhadores por um prazo determinado.

Assim, a não ser que as partes disponham de outra forma no contrato, em caso de rescisão por culpa ou iniciativa do clube, o treinador tem direito a metade da remuneração que receberia até o final do contrato (art. 479 CLT). Já se a rescisão se der por culpa ou iniciativa do treinador, o clube deve ser indenizado pelos comprovados prejuízos que isso lhe cause (art. 480 CLT).

Apesar dessa regra geral, é comum que condições diversas sejam negociadas entre os clubes e os treinadores.

Na realidade, não é raro que esse seja um dos pontos centrais das tratativas para a contratação do profissional. É possível, então, que haja ajustes diversos, tanto, por exemplo, para prever que nenhum valor é devido caso haja rescisão quanto para estabelecer multa até mesmo superior à regra geral. Também é possível já ajustar uma quantia específica devida pelo treinador caso dê causa à rescisão, para afastar o cenário geral de a agremiação ter que comprovar prejuízos.

Naturalmente, isso dependerá do poder de barganha da agremiação ou do técnico, assim como da reputação das partes, tanto do ponto de vista esportivo quanto do ponto de vista do histórico de respeito ou não a contratos prévios.

De acordo com a regra geral da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), uma eventual multa, se devida pelo clube, deve ser paga juntamente das demais verbas rescisórias em até dez dias da dispensa. Também é possível, porém, que seja combinada outra forma de pagamento. Inclusive, a agremiação e o treinador podem ajustar, já no contrato de trabalho, que, em caso de rescisão, a multa será parcelada.

Como se vê pela mídia esportiva, não é raro que a dispensa de um técnico suscite discussões acerca da multa ajustada contratualmente, havendo clubes que buscam, apenas após a rescisão, repactuar o valor ou a forma de pagamento dessa indenização.

Os problemas, porém, não param por aí.

Afinal, o treinador de futebol é um trabalhador sujeito a regras específicas, em razão de sua atividade esportiva. Uma delas é a de que, para atuar por uma agremiação, não basta possuir contrato de trabalho, sendo necessário, ainda, que esse vínculo esteja registrado na Confederação Brasileira de Futebol (CBF). De acordo com a Lei Geral do Esporte (LGE), esse registro deveria ocorrer em até dez dias da contratação.

Uma questão curiosa é que, no ato do registro, consta a mesma categoria para o técnico e para seus auxiliares, sendo ambos enquadrados no tipo de contrato “Contrato Treinador/Assistente Técnico”.

Aponte-se, ainda, que, para atuar na Série A do Campeonato Brasileiro de Futebol Masculino, o treinador deve possuir licença válida de treinador expedida pela CBF (PRO ou A) ou estar devidamente matriculado em um curso de formação para obtenção de licença junto à CBF. Para profissionais estrangeiros, é necessário possuir licença válida de treinador homologada pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol).

Além disso, de acordo com o Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol (RNRTAF) da CBF, o clube só poderia registrar contrato com um novo técnico após a publicação da rescisão do treinador anterior no Boletim Informativo Diário (BID). Da mesma forma, um treinador só poderia ser registrado por uma agremiação caso já tivesse ocorrido a baixa de um eventual registro anterior com outra agremiação.

Em outras palavras, de acordo com o RNRTAF, só poderia haver um registro por vez entre treinador e clube, limitando-se o duplo registro tanto por parte do técnico quanto por parte da agremiação. Muito embora isso não esteja escrito, parece que o intuito da regra é, ao menos, dificultar a troca desenfreada de treinadores pelos clubes (ou de clubes pelos treinadores).

Afinal, como, em tese, a rescisão federativa que é registrada demanda a assinatura do clube e do técnico, ao menos em tese a agremiação precisaria pagar os valores rescisórios ou, ao menos, estar em acordo com o treinador antigo para, então, registrar um vínculo com um novo profissional. Da mesma forma, um técnico não poderia atuar por um novo clube antes de acertar sua rescisão com o anterior.

Apesar disso, as constantes notícias divulgadas pela mídia especializada têm apontado existir exceções a essa regra. Com efeito, nos últimos meses, foram noticiadas situações peculiares envolvendo grandes agremiações brasileiras, tais como um clube que registrou o novo técnico antes mesmo da rescisão com o anterior ser publicada no BID e um clube que, supostamente, surpreendeu o técnico anterior com a publicação de sua rescisão no BID sem que tivesse havido esse ajuste.

Essas situações suscitam diversas dúvidas no mercado. Seria possível ao clube registrar uma rescisão federativa sem a assinatura do treinador, desde que reconheça que a dispensa foi por iniciativa do próprio clube e sem justa causa? Estariam os clubes se aproveitando do fato de a categoria de registro ser a mesma para treinador e assistente para registrar mais de um profissional ao mesmo tempo?

É possível se questionar, ainda, quais seriam as consequências caso se constate que uma agremiação violou as regras do RNRTAF sobre o registro de um treinador. Ou, ainda, se estamos diante de uma situação de indevida desvantagem ao técnico. Afinal, apenas os clubes podem subir registros no BID, seja de contratação ou de rescisão. Assim, o técnico não possui meios de fazer isso unilateralmente, dependendo de auxílio, por exemplo, da Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) da CBF para garantir o registro de sua rescisão se o clube não o fizer.

Como se pode ver, há mais dúvidas do que respostas. Será necessário acompanhar, então, o desdobramento dessas situações.

E é importante mencionar, nessa seara, que a CBF já buscou limitar a troca de treinadores pelos clubes da Série A de outras formas.

Com efeito, na edição de 2021 do campeonato, cada clube só poderia dispensar um técnico ao longo da competição, e cada treinador só podia pedir demissão uma vez, sob pena de não ser possível um novo registro. Como a rescisão por comum acordo não contava para esse limite, havia, porém, uma “válvula de escape” ao mercado.

No entanto, por pressão dos clubes, a regra foi retirada na edição de 2022.

Assim, como abordado, a rescisão do contrato de trabalho de um técnico de futebol, além de impactar profundamente o planejamento e a atuação esportiva das agremiações, traz reflexos jurídicos.

E deve-se reconhecer, ainda, que as rodadas iniciais da edição de 2025 do campeonato trouxeram novamente à tona a discussão: deveria a CBF tentar limitar a troca de treinadores pelos clubes por meio de seus regulamentos e/ou de meios para garantir seu cumprimento?

Alice Laurindo é mestra em Processo Civil e bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), em que é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo. Além disso, atua em Direito Desportivo e Direito do Entretenimento no escritório Tannuri Ribeiro Advogados, e é membra da IB|A Académie du Sport e do Laboratório de Pesquisa da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD LAB)