Quando Edilson Pereira de Carvalho foi pego no flagra e preso por manipular o resultado de 11 partidas de futebol das Séries A e B do Brasileirão, no agora longínquo ano de 2005, o mercado brasileiro considerou um “desvio de caráter” do árbitro ter se envolvido com uma máfia de fraudadores de apostas esportivas.
Naquela época, o jogo era proibido no país. Porém, já existiam, mundo afora, sites de apostas que aceitavam cartões de crédito internacionais de brasileiros. E, pelo mundo todo, sabia-se que várias apostas tinham origem aqui no País Tropical Abençoado por Deus e Bonito por Natureza.
Só faltou o “mas que beleza”. Porque, depois do escândalo denominado “Máfia do Apito”, entramos em uma outra era em relação às apostas esportivas no mundo todo. Ao caso do Brasil seguiram-se outros que envolveram atletas de diversos outros esportes e, logicamente, sites de apostas que eram usados como iscas para as fraudes.
Em 2008, a terceira edição da Revista Máquina do Esporte trouxe o debate sobre as apostas esportivas e o problema que elas haviam se tornado para o esporte.
“Veja os reflexos que a corrupção no esporte tem para o negócio esportivo: patrocinadores temerosos, perda de credibilidade e debandada de investimentos são alguns dos efeitos da manipulação de jogos em todo o mundo”, dizia o texto de chamada para o nosso leitor.
Naquela época, o mundo do tênis tinha sido abalado por jogos manipulados pelo russo Nikolay Davydenko, então quarto colocado no ranking mundial. Diversos escândalos no tênis, no atletismo, no futebol, na natação e em vários outros esportes foram surgindo.
O momento era propício para isso.
A Europa havia liberado o patrocínio esportivo nas camisas de times e nas ligas esportivas. E os sites começavam a tornar o jogo um negócio virtual, abandonando a necessidade do apostador ir até uma casa para fazer sua aposta.
Houve um fluxo enorme de apostadores em todo o planeta. E, naturalmente, apareceram os problemas que envolvem um mundo novo, que promete dinheiro fácil e sem muita regulamentação.
Passaram-se dez anos até que o Brasil decidisse abrir espaço para legalizar a aposta esportiva. Foi no apagar do Governo Temer que o jogo foi liberado, porém não regulamentado. Basicamente, começamos 2019 com a porta de casa aberta, mas sem ninguém para controlar quem entra, quem sai, como entra, como sai, com quem entra e com quem sai.
E levamos essa lenga-lenga durante os quatro anos do Governo Bolsonaro, permitindo que casas de apostas surgissem, sumissem, não pagassem vencedores, não controlassem seus investimentos, etc.
De uma hora para outra, saímos de um ambiente inexplorado para uma invasão sem precedentes de colonizadores. Sem que ninguém se preocupasse com as consequências dessa vida de apostas sem qualquer controle.
Nos últimos dois anos, o Governo Lula começou a tentar colocar ordem na casa. Mas o estrago já está feito. Afinal, durante cinco anos, não nos preocupamos com nada.
Não discutimos vício em jogo. Não debatemos a comunicação usada pelas casas de apostas e o impacto que ela tem sobre a pessoa que joga. Não debatemos quem são os donos das casas. Não nos preocupamos em saber como funciona esse negócio.
Simplesmente deixamos as apostas entrarem nas nossas vidas sem saber que elas são um negócio extremamente perigoso para o apostador e um lugar perfeito para o crime organizado intervir.
Há quase 20 anos, a Máquina do Esporte acompanha e mostra como esse mercado tem se desenvolvido no mundo todo. Já revelamos defeitos e virtudes, já colocamos muitos dedos nas feridas, já alertamos para a necessidade de um olhar severo de autoridades esportivas e políticas sobre o jogo irresponsável.
Há 16 anos, fizemos a reportagem que mostrava como o crime organizado atuava por meio de apostas esportivas, aliciando atletas, corrompendo resultados e causando danos severos a apostadores e à indústria do esporte.
Na Inglaterra, a aposta é parte da cultura do esporte. Existe desde os anos 1800. Não por acaso, é o país em que o Guinness Book of Records foi criado, como uma ativação da cerveja que dá nome ao livro e que tentava virar referência para mediar as apostas nas mesas de bar.
Já o Brasil está, há quase seis anos, deitado em berço esplêndido na discussão de como deve funcionar o mercado do jogo. Não precisava ser nenhum especialista para perceber que isso não daria certo.
Ter um dos maiores fenômenos da música sertaneja dos últimos tempos foragido da polícia por envolvimento suspeito com o mercado de apostas é um símbolo de como as coisas estão erradas nesse mercado.
Se a gente apostasse, lá em 2019, que um mercado legalizado, mas sem regras, só podia dar ruim, provavelmente teria uma das odds mais baixas para pagar ao apostador…
Erich Beting é fundador e CEO da Máquina do Esporte, além de consultor, professor e palestrante sobre marketing esportivo