Em março de 2022, Spotify e Barcelona anunciaram um dos maiores acordos de patrocínio da história do futebol. A parceria repercutiu mundialmente à época por diversos motivos, dentre eles o fato do clube catalão ter passado mais de um século sem patrocinadores visíveis no uniforme; ser o primeiro acordo de naming rights do tradicional Camp Nou, que hoje inclusive passa por uma modernização; e por ser a primeira grande movimentação dentro do esporte praticada pela plataforma sueca de streaming de música e conteúdos em áudio.
Apesar dos valores não terem sido divulgados oficialmente, o portal Época Negócios chegou a noticiar um investimento de pelo menos € 300 milhões no contrato válido até 2026. Mas, para além do que repercutiu na época do acordo e nos anos seguintes, como a promoção de lançamento de grandes artistas em parceria com a plataforma e o clube incluindo os gigantes da indústria Coldplay, Rolling Stones e Travis Scott, hoje vamos falar do que não repercutiu tanto assim, especialmente no Brasil.
Algumas fontes, como o periódico espanhol Sport e o jornal The Irish Times, noticiaram que, durante as negociações, representantes do Spotify questionaram o clube sobre o volume de fãs dentre os 350 milhões de seguidores que poderiam ser identificados e ativados de forma personalizada e ficaram desapontados quando descobriram que apenas 1% desses fãs estavam de alguma forma registrados em bases proprietárias do clube.
Especula-se que, se esse percentual fosse maior, o valor do contrato poderia ter crescido consideravelmente. A oportunidade perdida de gerar ainda mais valor no contrato com o Spotify ocorreu aproximadamente dois anos depois do clube anunciar um plano ambicioso de estratégia digital. Josep Bartomeu, presidente do Barcelona à época declarou:
“Nós agora podemos utilizar a tecnologia digital para descobrir quem são nossos fãs e o que eles querem. É por isso que estamos desenvolvendo plataformas ‘in-house’ que usam uma metodologia de análise de dados para oferecer aos nossos fãs uma ampla gama de conteúdos, produtos e serviços adaptados às suas necessidades”.
O discurso e o anúncio pareciam promissores. Mas a notícia do desapontamento dos executivos do Spotify e a aparente falta de tangibilização deste plano cinco anos depois indicam que ele não foi devidamente concretizado. Bartomeu, vale destacar, renunciou ao cargo ainda em outubro de 2020 devido a uma série de crises institucionais enfrentadas pelo clube.
Desse episódio ficam algumas perguntas:
- Por que um dos clubes esportivos mais cultuados da atualidade não conseguiu executar uma estratégia centrada nos fãs para gerar novos modelos de receita?
- Por que ainda precisamos falar sobre transformação digital no esporte, se este é um tema discutido à exaustão desde o início dos anos 2000 em outras indústrias?

O que o Spotify tem a ensinar para o esporte?
Em outro trecho do lançamento da estratégia digital do Barcelona em 2020, o ex-presidente afirmou que entendia que os concorrentes do clube não estão apenas nos esportes, mas em toda a indústria do entretenimento. É com essa mentalidade que o Spotify tem conseguido bater recordes de usuários e faturamento desde que surgiu em 2006 como o grande expoente da revolução na forma de consumir música.
A plataforma fundada por Daniel Ek e Martin Lorentzon domina mais de 30% do mercado de streaming de áudio. O sucesso da empresa sueca pode ser dividido em três grandes fases.
1) A oferta de uma experiência de consumo de música inovadora por meio de algoritmos que entendem o comportamento do usuário e aumentam a retenção com recomendações personalizadas de novos artistas, playlists e músicas, crescendo de forma consistente a base de assinantes e usuários ativos para alimentar seus três principais modelos de receita: assinatura, publicidade e comissão de vendas.
2) A grande aposta em podcasts e conteúdos originais. Desde 2016, o Spotify passou a apostar em um formato de conteúdo em áudio cada vez mais consumido e popular em todo o mundo: os podcasts. Por meio de parcerias e aquisição de grandes estúdios, produção de conteúdos originais e uma nova oferta de experiência centrada no consumo de podcasts, a plataforma alavancou ainda mais seu crescimento e suas fontes de receitas, ocupando ainda mais tempo “de ouvido” de seus clientes.
3) Dominante no tempo “de ouvido”, a aposta agora é no tempo de tela. Assim como Bartomeu entendeu o Barcelona como uma plataforma de entretenimento e não apenas de esporte, Daniel e companhia entenderam que a concorrência não está apenas nas plataformas de áudio e passou a mirar também o vídeo. Desde 2022, a plataforma passou a aceitar conteúdos em vídeo e já são mais de 300 mil vídeos disponíveis, principalmente os chamados “videocasts”. Assim, espera-se que o Spotify concorra cada vez mais pelo tempo de tela com outros gigantes como YouTube, TikTok e até Netflix.
Na arte abaixo, é possível encontrar alguns dados sobre o Spotify, seu modelo de negócios bilionário e como ele de certa forma se assemelha com o que o Barcelona propôs em 2020.

Mas o que o esporte tem a ver com isso?
Se os aprendizados ainda não ficaram claros o suficiente, é importante que sejamos diretos. Ao se juntar ao Barcelona, o Spotify buscava um canhão de mídia e visibilidade (e isso eles encontraram), mas também buscava um laboratório de entendimento dos fãs de esporte para oferecer produtos e serviços personalizados e convertê-los como seus próprios usuários e assinantes, além da possibilidade de realizarem descobertas que poderiam culminar na produção de conteúdos segmentados no esporte. E isso, aparentemente, o clube catalão entregou bem menos do que o esperado.
O principal motivo para isso acontecer é que o clube não controla os canais e tampouco detém os dados da grande maioria dos fãs enquanto eles estão consumindo seu conteúdo. A consequência disso é uma capacidade reduzida de gerar receita por intermédio dessa multidão digital que se identifica de alguma forma com o clube. Sendo muito frio e racional, fica a pergunta: qual é a utilidade de um fã que não pode ser convertido em receita direta ou indireta para um clube esportivo?
Se realizarmos um comparativo grosseiro na capacidade de geração de receita comercial entre Barcelona e Spotify, encontramos um abismo. O clube possui cerca de 350 milhões de seguidores (seguidor não é usuário, mas vamos ignorar a sobreposição entre plataformas apenas como exercício ilustrativo), enquanto a plataforma de streaming tem pouco mais de 410 milhões de usuários ativos não assinantes, portanto disponíveis para publicidade. Com um público parecido, o Spotify gerou quase € 2 bilhões de receita com publicidade em 2024. Já o clube catalão gerou pouco mais de € 200 milhões no mesmo ano.
Existe uma métrica adotada pelas plataformas que possuem um modelo “freemium” (planos gratuitos e pagos com a venda de publicidade) chamada Arpu (sigla para “Average Revenue per User” ou “Receita Média Gerada por Usuário”). No exercício comparativo acima, o Arpu gerado pelas receitas comerciais do Barcelona seria de pouco mais de € 0,60 por seguidor em 2024, enquanto o do Spotify seria de € 4,63, quase oito vezes maior.
E a tendência é de que a plataforma sueca cresça cada vez mais essa fonte, tanto pelo ganho de relevância da publicidade em áudio nos últimos anos quanto pelas novas oportunidades geradas pelo consumo de vídeo na plataforma. Onde está a grande diferença? É simples: a maior parte da receita gerada pelos fãs do Barcelona enquanto consomem conteúdo do clube vai para Meta, Google, TikTok e X, as plataformas que controlam os canais e os dados desses fãs.
Transformação digital é questão de sobrevivência
A realidade de um dos maiores clubes de futebol do mundo é um grande espelho da indústria como um todo, com algumas poucas exceções de entidades esportivas (sejam clubes ou ligas) que já entenderam o que é necessário para se posicionar como plataforma de entretenimento, dominando, assim, os canais e os dados dos fãs.
O esporte, de maneira geral, ainda está deixando (muito) dinheiro na mesa. Existem diversos aprendizados que as transformações digitais de outras indústrias deixaram e que vemos serem aplicadas de forma ainda muito incipiente no nosso contexto. Seja no futebol ou em qualquer outra modalidade, não faz diferença entre Modelo Associativo ou Sociedade Anônima se uma entidade esportiva não for capaz de transformar a relação de seu fã em geração de receita recorrente.
O recado do Barcelona em 2022 passou batido, mas a conta pode chegar a qualquer momento. No futebol brasileiro, existe um temor crescente de que a eventual proibição ou limitação de publicidade e patrocínio das marcas de apostas, as “bets”, possa colapsar a modalidade. Mas por que será que o esporte mais popular do país passou a ser dependente de um único segmento? Qual é o plano dos clubes de futebol e de outras modalidades para voltar a trazer grandes contratos também em outras indústrias?
Vitor Marini é profissional de marketing com mais de uma década de experiência liderando projetos de mídia digital e dados para grandes anunciantes do país, como Samsung e Ford, entre outros. Atualmente, é CEO da Retize, a primeira sports media network (rede de mídia esportiva, em tradução livre) do país, que ajuda os clubes esportivos a transformarem as interações digitais dos fãs em receita no mercado publicitário e também auxilia na conexão das marcas aos seus clientes por meio do esporte e dos games