O Poder Legislativo tem se debruçado recentemente sobre temas até antes desconhecidos e não regulados no nosso país. Primeiro, foi a vez das apostas esportivas, com o processamento da medida provisória (MP) n° 1.182/2023, e até a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar manipulação de resultados. Agora, chegou a vez dos chamados fantasy games (dentre os quais, o mais conhecido é o “Cartola FC”).
A natureza desses jogos tem sido debatida em meio ao importante projeto de lei (PL) n° 2.796/2021, conhecido como Marco Legal dos Games. Na última quarta-feira (20), o tema foi objeto de discussão no Senado Federal, e, à ocasião, o presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) externou opinião no sentido de que os fantasy games teriam “que ser tratados à semelhança da regulamentação da tributação das bets [apostas]”.
A fala do presidente da Anfip ecoa um discurso proferido em uma etapa anterior da tramitação do referido projeto de lei pela senadora Leila Barros, que manifestou que “os fantasy games se assemelham mais aos jogos de azar, ou, mais especificamente, à loteria de aposta de quota fixa”. Contudo, esta visão encampada pela ilustre senadora e pelo presidente da Anfip não encontra respaldo na legislação brasileira vigente nem nos inúmeros estudos e análises feitos a respeito do assunto ao redor do globo.
Começa-se pelo antigo decreto 3.688/41, que define clara e precisamente que jogos de azar são aqueles em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte. Assim, o decreto buscou impedir uma desvirtuação da natureza da modalidade de jogo e objetar que ele se torne alvo de perpetuação de vícios.
A esse respeito, é consolidado pela jurisprudência que, caso a boa performance no jogo dependa de uma análise estratégica e matemática, bem como de outras tantas habilidades por parte dos competidores, afasta-se o caráter de “azar” do jogo em questão (vide decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no mandado de segurança n° 70025424086). Portanto, se considerarmos que os fantasy games não dependem essencialmente da sorte, mas sim da habilidade e conhecimento de seus jogadores, o que são eles de fato? São os famosos “jogos de habilidade”.
Um jogo de habilidade é aquele que privilegia as habilidades, qualificações e atributos pessoais dos praticantes, em detrimento de outros fatores. A habilidade em questão pode envolver características físicas, motoras, de coordenação, matemática ou estatística, também incluindo aspectos comportamentais e analíticos. Nesse sentido, os fantasy games dependem de um pensamento estratégico, tendo em vista que demandam escolhas por parte do jogador que resultem em uma equipe equilibrada e capaz de garantir boas pontuações.
Além disso, os jogadores de fantasy games necessitam conhecer as notícias sobre a modalidade e ter pleno conhecimento das táticas e dos valores de pontuações do jogo.
A partir desses fatores, a Kansas State University apresentou, em 2018, um estudo concluindo categoricamente que “fantasy sports não são jogos de azar” e “jogadores sem habilidade nunca vencem nos fantasy sports”. Nessa mesma linha, no ano seguinte, o Massachusetts Institute of Technology (MIT) publicou um estudo apontando para o fato de que a modalidade é baseada em habilidade, e não em sorte.
Não apenas os estudos foram nessa direção. Do famoso “Caso White v. Cuomo”, julgado pela Corte de Apelações de Nova York, extraem-se ao menos duas lições: o resultado dos fantasy games não depende do desempenho de um atleta real em particular (como aconteceria nas apostas), mas sim da habilidade do jogador do fantasy em reunir os melhores atletas em sua equipe; e o fato de que existirem uma taxa de inscrição e uma recompensa total já predeterminadas em caso de vitória não equipara o fantasy a um jogo de azar, uma vez que a recompensa final independe da quantidade de participantes ou do volume das taxas de inscrição.
Portanto, seja à luz da legislação nacional, dos estudos ou dos precedentes ao redor do mundo, o enquadramento do fantasy como jogo de habilidade é absolutamente incontroverso. Nesse sentido, é necessário que o Congresso Nacional e o Governo Federal estejam atentos à melhor técnica na análise do tema, a fim de se evitarem resultados legislativos inconsistentes e/ou ineficientes, como recentemente ocorreu com a Lei Geral do Esporte (LGE), que começou bem, mas terminou mal. Isso, contudo, é uma história para outro artigo.
André Sica é sócio da área de esportes e entretenimento do escritório CSMV Advogados