Em abril de 2022, a Fifa lançou o seu primeiro “Guia para Licenciamento no Âmbito do Futebol Feminino” (“Guide to Club Licensing in Women’s Football”, no original). No entanto, apesar da importância do documento, percebe-se que ele ainda foi pouco comentado e explorado nacionalmente. Sendo assim, esta coluna pretende contribuir com essa discussão, expondo o que é e para que serve tal guia.
Não é de hoje que a Fifa busca colaborar com o desenvolvimento do futebol feminino. Com efeito, em 2018, a entidade lançou um documento oficial com sua estratégia para o avanço da modalidade.
Além disso, a Fifa elegeu, como uma de suas principais metas para o período de 2020 a 2023, a contribuição na aceleração desse crescimento. Podemos mencionar, ainda, a possibilidade de financiamento de projetos de futebol feminino por meio do programa “Fifa Forward”.
Nesse contexto, em maio de 2021, a Fifa disponibilizou um relatório interessante acerca do panorama das condições do futebol feminino ao redor do mundo. O documento traz análises detalhadas nas seguintes categorias: (i) esportivo; (ii) governança; (iii) panorama financeiro; (iv) engajamento dos fãs; (v) atletas e (vi) impactos da pandemia de Covid-19.
O referido estudo apresenta, em escala global, dados necessários para embasar medidas que aprimorem a modalidade. Como exemplos de informações interessantes desse relatório, podemos elencar: (i) a constatação de que os contratos de patrocínio são, em média, mais vantajosos quando negociados de forma independente para o time de futebol feminino, sem vinculação à eventual equipe masculina da agremiação; e (ii) a constatação de que os times que exigem a aquisição de compra de ingresso para suas partidas de futebol feminino têm, em média, públicos superiores.
Nesse relatório, constou, ainda, o reconhecimento de que o sistema de licenciamento de clubes poderia ser utilizado como uma forma de incentivar a profissionalização da modalidade. Dando continuidade a esse processo, a Fifa disponibilizou recentemente o mencionado “Guia para Licenciamento no Âmbito do Futebol Feminino”.
Para entendê-lo, porém, precisamos responder ao seguinte questionamento: o que é o sistema de licenciamento de clubes?
Em resumo, trata-se de um conjunto de regras estabelecidas pelas entidades de administração do desporto (isto é, como a Conmebol, a CBF e as federações estaduais) como condições mínimas para que os clubes disputem as suas competições. É o caso, por exemplo, de estabelecer como requisito para que determinada agremiação dispute o Campeonato Brasileiro a comprovação de que possui instalações para treinamento de sua equipe principal e suas categorias de base.
Em geral, as condições de licenciamento tratam de assuntos diversos, tais como critérios esportivos, jurídicos, econômicos, contábeis, administrativos e de infraestrutura. É importante mencionar, ainda, que tal sistema possui certo caráter educativo, tendo como objetivo principal conduzir os clubes em direção a uma gestão mais profissional. É comum, inclusive, que isso seja feito como uma etapa prévia ao estabelecimento, por exemplo, de regras de fair play financeiro.
No âmbito brasileiro, o tema não é novidade. Afinal, em 2017, em cumprimento a orientações anteriores da Fifa, a CBF editou o “Regulamento de Licença de Clubes”, aplicável de forma gradual às séries do Campeonato Brasileiro de futebol masculino. E foi justamente nesse documento que se estabeleceu a necessidade de os clubes participantes da competição manterem uma equipe principal feminina, ou um acordo de parceria ou de associação com outra agremiação que já a mantenha.
A despeito de polêmicas quanto ao acerto da medida, foi a partir de então que houve a intensificação da participação dos clubes já tradicionais no âmbito do futebol masculino nas competições femininas. Além disso, foi desenvolvido um sistema parecido no âmbito da Conmebol.
No entanto, apesar de os sistemas de licenciamento de clubes contribuírem internacionalmente com o desenvolvimento da modalidade, inicialmente, eles se voltaram, sobretudo, às competições masculinas. Diante disso, a Fifa passou a recomendar que tal modelo também fosse utilizado especificamente para campeonatos femininos.
Aos poucos, foram surgindo, então, alguns casos voltados para a modalidade. Como exemplos pioneiros, podemos citar o “Club Licensing Manual for Participation in the Uefa Women’s Champions League” e o “Regulamento de Licenças de Clubes no Futebol Feminino”, da Confederação Sul-Americana de Futebol.
O que a Fifa pretendeu com o “Guia para Licenciamento no Âmbito do Futebol Feminino” foi, portanto, incentivar esse fenômeno, fornecendo bases para o estabelecimento de novos projetos de licenciamento voltados ao futebol feminino.
Isto é, não se trata do estabelecimento de um sistema global, mesmo porque isso enfrentaria diversas dificuldades práticas, mas sim de um manual a ser utilizado para a criação de modelos locais. O que a Fifa buscou, então, foi expor um passo a passo do que as associações nacionais devem fazer para a criação de sistemas de licenciamento voltados ao futebol feminino.
O documento é dividido em dois segmentos, voltados, respectivamente, para a elaboração e para a implementação do sistema de licenciamento de clubes.
Para a elaboração, foram elencados dez passos principais:
- Estabelecimento de orçamento para criação do sistema;
- Contratação ou nomeação de um profissional responsável por essa tarefa, que podemos chamar de Diretor de Licenciamento de Clubes;
- Organização de um workshop inicial interno;
- Contratação ou nomeação de profissionais especializados nas diversas áreas que envolvem o licenciamento de clubes;
- Compreensão da realidade dos clubes e determinação do âmbito de aplicação do sistema;
- Desenvolvimento dos critérios para licenciamento de clubes;
- Confirmação das bases legais e desenvolvimento dos regulamentos aplicáveis;
- Estabelecimento de uma plataforma on-line de licenciamento de clubes;
- Estabelecimento de um comitê ordinário e instância recursal; e
- Organização de um workshop referente ao sistema de licenciamento com os clubes.
Já para a implementação do sistema, foram elencados as seguintes oito etapas:
- Estabelecimento e aprovação de um orçamento para implementação do sistema;
- Organização de um evento de lançamento do sistema de licenciamento com os clubes;
- Início do procedimento e auxílio aos clubes;
- Revisão das aplicações para licenciamento e visita aos clubes;
- Organização de um evento para conceder ou negar as licenças requeridas;
- Implementação dos processos recursais;
- Desenvolvimento de um relatório do cenário encontrado e roteiro para cada um dos clubes; e
- Organização de workshops com os clubes e revisão do sistema com todos os participantes.
Convém ressaltar, nesse contexto, a importância de se compreender o cenário local para desenvolver sistemas de licenciamento compatíveis e adequados. É extremamente relevante, diante disso, a elaboração de estudos voltados ao mercado do futebol feminino. Constata-se, assim, que, ao publicar o “Guia para Licenciamento no Âmbito do Futebol Feminino”, a Fifa deu mais um passo importante para o fomento do futebol feminino. Resta acompanhar, então, como esse documento será utilizado na prática pelas associações nacionais.
Alice Laurindo é graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em que cursa atualmente mestrado na área de processo civil, estudando as intersecções do tema com direito desportivo; atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados; é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; membra da IB|A Académie du Sport; e escreve mensalmente na Máquina do Esporte sobre direito desportivo