“Bem-vindos ao Wrexham”. O nome da série lançada em 2022 convida o espectador a conhecer uma cidade do País de Gales e o envolvimento de sua comunidade com um clube de futebol de mesmo nome: Wrexham. Trata-se do clube adquirido pelos atores Ryan Reynolds e Rob McElhenney, produtores da série que tem como mote a tentativa de recuperação de um dos clubes de futebol mais antigos do mundo e que então atuava em uma competição equivalente à quinta divisão do futebol inglês.
O tema desta coluna poderia ser a evidente relação entre o esporte e o entretenimento, que vem inclusive gerando diversos produtos (entre séries e filmes) similares a esse, mas (ao menos nesta oportunidade) não é. Tratarei, na verdade, de alguns dos aspectos jurídicos relacionados à atividade de um clube de futebol, os quais são claramente retratados na obra.
A série tem início com o processo de aquisição do Wrexham pelos atores. Seu ponto de partida, portanto, é uma operação típica do Direito Societário e que tem sido presenciada com alguma frequência no Brasil a partir da publicação da Lei nº 14.193/2021 (a “Lei da SAF”). Ainda que a obra não avance em detalhes sobre a natureza jurídica do clube, é certo que se estabeleceu um aporte de recursos pelos atores para aquisição do seu controle, o que requereu aprovação da “Supporters Trust”.
A “Supporters Trust” é uma espécie de associação de torcedores, que até então comandava o clube (após episódios de gestões frustradas lideradas por antigos donos, também retratados na série). Não se trata propriamente de uma “torcida organizada”. Como define o site da própria “Supporters Trust” do Wrexham, “não é um mero ‘Clube de Torcedores’, mas uma organização guarda-chuva”, isto é, que se propõe a interagir com o clube em suas mais diversas facetas. Trata-se, portanto, de uma organização que não se identifica de forma tão clara no contexto brasileiro, embora recentemente tenha ganhado destaque a iniciativa do Cruzeiro de constituir um Comitê de Torcedores (ainda assim, diferente de uma Supporters Trust na medida em que é um órgão interno do clube, não uma entidade à parte).
A série avança pela temporada e mostra um curioso episódio de uma expulsão do atleta errado pelo árbitro após uma cotovelada desferida (aparentemente sem intenção) por seu companheiro de time. Em seguida, revela-se que o atleta que efetivamente atingiu o adversário foi posteriormente suspenso por algumas partidas.
Se fosse no Brasil, esse seria um caso de competência da Justiça Desportiva (cada país adota seus próprios modelos para a resolução de casos afetos à disciplina em suas competições, inclusive com diferentes critérios de aplicação de sanções), regido pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva. Trata-se de um dos temas mais conhecidos do público em geral quando se fala em aplicação do Direito no esporte, devido às corriqueiras notícias sobre suspensão de jogadores nas principais competições do país, e é um assunto bastante relevante para os clubes diante do impacto esportivo direto causado pela impossibilidade de um ou mais atletas atuarem.
Em outro episódio, os proprietários do Wrexham se reúnem com o técnico da equipe para discutir a necessidade de eventuais reforços. Nesse ponto, a série externa o conceito de “janelas de transferências”, períodos nos quais se permite que os clubes registrem novos atletas para reforçar suas equipes. Eis mais um aspecto extremamente importante aos clubes de futebol e que movimenta diretamente seus assessores jurídicos no que tange à elaboração, revisão e negociação de contratos diversos, tais como contrato de transferência, contrato de trabalho, contrato de licenciamento (ou sublicenciamento) de imagem e contrato de comissão, entre outros.
Dada a diversidade da natureza jurídica dos contratos citados (que pode se ampliar ainda mais em operações mais complexas), uma única transferência de atleta entre duas equipes desafia a incidência de ramos diversos do Direito, com destaque para o Direito Trabalhista, o Direito Civil e, claro, o Direito Desportivo (inclusive em seu sentido mais estrito, relacionado às normas emanadas das organizações que regulam o esporte, o sistema jurídico autônomo denominado “Lex Sportiva”, sobre o qual já expus em outras oportunidades aqui neste espaço). Em resumo, não basta que os contratos observem o disposto na legislação nacional; eles devem ser adequados também às regras da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), no caso do Brasil, e da Fifa que os regem.
Além dos aspectos acima, a série também aborda de forma didática a organização do futebol competitivo na Inglaterra, expondo a existência de diferentes divisões com hierarquia entre si. Assim, os primeiros colocados de uma divisão são promovidos àquela imediatamente superior, enquanto os últimos colocados são rebaixados àquela imediatamente inferior. Ainda que essas noções permeiem o senso comum do público mais próximo ao futebol, vale lembrar que esse sistema decorre diretamente dos regulamentos das entidades que organizam o futebol nos respectivos países, sejam federações, confederações ou ligas. Em outras palavras, é reflexo direto da aplicação de normas que integram a “Lex Sportiva”.
Enfim, os exemplos ora expostos, extraídos de uma série que tem como tema um pequeno clube galês, são por si só reveladores da abrangência e da complexidade da aplicação do Direito com relação às atividades de um clube de futebol. São diversas as áreas do Direito incidentes, e múltiplas as circunstâncias fáticas que orientam sobre quais normas e princípios devem ser aplicados. Isso não é privilégio do Wrexham no País de Gales, nem exclusividade dos clubes brasileiros: trata-se de uma realidade inerente às organizações que se dedicam à prática esportiva de alto rendimento, especialmente no atual contexto do esporte (e, sobretudo, do futebol) como negócio global.
Pedro Mendonça é advogado especializado na área esportiva desde 2010, com vasta experiência na assessoria a diversas entidades esportivas, como comitês, confederações e clubes, além de atletas, e escreve mensalmente na Máquina do Esporte