Um cenário que era pouco provável há uma década pode estar em vias de se tornar realidade. Os quatro grandes clubes de futebol da cidade do Rio de Janeiro caminham para ter estádios próprios, com capacidades consideráveis de público.
No último domingo (23), o Flamengo publicou, em sua conta oficial no Instagram, um post agradecendo o prefeito Eduardo Paes (PSD), que deverá ser candidato à reeleição, pela decisão de desapropriar o terreno onde operava o Gasômetro de São Cristóvão, antigo posto de abastecimento de gás manufaturado, que funcionou na capital fluminense entre os anos de 1911 e 2005.
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Nos últimos anos, a área situada perto da região portuária da cidade vinha sendo administrada pelo Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha, que é gerido pela Caixa desde 2009.
A partir de 2022, o Flamengo passou a demonstrar interesse declarado de assumir o terreno do Gasômetro, de 86 mil metros quadrados, para ali construir seu estádio, com capacidade para 80 mil torcedores.
Mas as negociações com o banco estatal não avançaram, pelo menos não no ritmo desejado pelo clube. Coube a Eduardo Paes, um vascaíno declarado e juramentado, a missão de encurtar os caminhos para que o arquirrival Flamengo realize o sonho do estádio próprio.
Terreno será doado ao Flamengo?
A comemoração efusiva do clube em sua rede oficial, aliada ao uso da palavra desapropriação, pode criar a impressão de que o Flamengo poderia ser presenteado com um terreno doado pelo município do Rio de Janeiro.
Mas o advogado especialista em direito público Frederico Meyer, sócio do escritório Lara Martins, explicou, em entrevista à Máquina do Esporte, que a desapropriação a ser adotada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, nesse caso, difere dos modelos tradicionais.
“Nesse caso específico, a prefeitura partiu do entendimento de que a área estaria subutilizada e não cumpriria com a função social da propriedade. Optou-se, então, pela desapropriação por hasta pública, ou seja, com a realização de um leilão, em que o dinheiro irá direto do comprador para o antigo proprietário do imóvel”, disse.
No formato tradicional, a Prefeitura do Rio de Janeiro, após declarar uma área como sendo de utilidade pública, teria de editar uma norma para a desapropriação do imóvel e pagar ao antigo dono uma quantia fixada para a alienação. O valor nem sempre segue os padrões de mercado, razão pela qual esse tipo de negociação acaba tendo a disputa judicial como desfecho mais frequente.
Na desapropriação por hasta pública, que passou a vigorar no Rio de Janeiro a partir do Plano Diretor sancionado neste ano, o processo tende a ser mais ágil, já que o método não envolve o uso de dinheiro público e pode até mesmo garantir a valorização do imóvel.
Para que o leilão ocorra, a prefeitura terá de lançar um edital, definindo as regras para ocupação e uso do solo, e os critérios para a participação no negócio, que deverá ficar restrita a clubes associativos ou Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs), interessados em construir um estádio com estacionamento próprio e outras benfeitorias.
Ao mesmo tempo em que esse sistema pode agilizar a realização do antigo sonho rubro-negro, abre brechas para que se torne um pesadelo. Isso porque o leilão poderá ser aberto a qualquer instituição que possua condições financeiras e se enquadre nos critérios exigidos pelo edital.
Neste ano, por exemplo, a 777 Partners, proprietária de 70% da SAF do Vasco, formou um consórcio com a WTorre para tentar tomar a gestão do Maracanã das mãos de Flamengo e Fluminense, que acabaram vencedores da licitação.
Mas, na opinião de Meyer, o time rubro-negro dificilmente será superado nessa disputa.
“O Flamengo anunciou que já dispõe de 85% do valor necessário para viabilizar o projeto. Dos clubes do Rio de Janeiro, é o que apresenta a maior capacidade financeira para realizar uma obra dessa dimensão. Por outro lado, temos de reconhecer que estamos em um terreno ainda novo, pois essa modalidade de desapropriação é recente no país. Pode ser que ocorra, sim, alguma disputa de lances no leilão”, afirmou o advogado.
A forma como deverá ocorrer a compra do terreno também afasta qualquer questionamento que poderia ser feito com base na lei eleitoral contra Paes (pelo fato do político, supostamente, estar favorecendo o time que tem a maior torcida da cidade que ele governa, isso em pleno ano em que tenta a reeleição ao cargo de prefeito).
De acordo com Antonio Carlos de Freitas Júnior, mestre em direito constitucional pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em direito eleitoral e sócio da A.C. Freitas Advogados, a legislação veda expressamente a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública, o que difere da situação envolvendo a área do Gasômetro.
“Não haverá doação do terreno ao Flamengo”, esclareceu.
Como ficará o Maracanã?
Se o projeto do novo estádio do Flamengo no Gasômetro se concretizar, a tendência é de que os quatro grandes do Rio de Janeiro passem a contar com uma casa própria.
No início da década passada, em meio aos grandes investimentos que eram feitos na infraestrutura para a Copa do Mundo de 2014, diversos clubes, mesmo aqueles cujos estádios não seriam sede do Mundial, aproveitaram para construir arenas modernas ou mesmo para reformar suas casas.
No Rio de Janeiro, porém, essa movimentação acabou ficando restrita aos estádios públicos, no caso o Maracanã (que passou por remodelações tanto para a Copa do Mundo quanto para os Jogos Olímpicos de 2016) e o Nilton Santos, que foi construído para sediar os Jogos Pan-Americanos de 2007, reformado para as Olimpíadas e hoje é administrado pelo Botafogo, com capacidade para 44 mil torcedores.
Em tempos mais recentes, o Flamengo formou um consórcio com o Fluminense, e ambos passaram a administrar o Maracanã, que comporta, atualmente, quase 79 mil espectadores. Enquanto isso, o Vasco segue com São Januário, que pode receber até 24,5 mil pessoas.
Na semana passada, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou a proposta que autoriza o clube cruz-maltino a realizar o projeto de remodelação do estádio, que completará 100 anos em 2027. A obra deverá ser realizada em parceria com a WTorre, e o novo complexo terá capacidade para 50 mil torcedores.
Com a construção do estádio próprio do Flamengo, o Fluminense ficaria, em tese, sozinho com o Maracanã. Em tese. Isso porque a licitação vencida pela dupla prevê um tempo de outorga mínimo de 20 anos.
Neste primeiro momento, enquanto a arena no Gasômetro não sair do papel, o Maracanã seguiria sendo importante para o Flamengo, que responde por 65% dos custos de manutenção da estrutura e ganha o mesmo percentual relativo ao faturamento do estádio.
Mas não está claro se, depois que tiver sua própria casa para cuidar, será financeiramente interessante ou mesmo viável para o clube seguir colocando dinheiro no Maracanã.
Fluminense
Vale lembrar que o Tricolor Carioca conta com seu espaço próprio, o Estádio de Laranjeiras. No entanto, além de ser antigo, o local tem capacidade para apenas 8 mil torcedores.
Principal destino de shows e grandes eventos esportivos do Rio de Janeiro, o Maracanã poderia representar uma importante fonte de recursos para o Fluminense.
Resta saber, porém, se o clube teria condições de, sozinho, bancar os custos do Maracanã. Na licitação realizada neste ano, Fluminense e Flamengo ofereceram a quantia anual de R$ 20.060.864,12 pelo estádio.
Pela proposta apresentada, o Tricolor arcaria com apenas 35% desse total, recebendo em troca o mesmo percentual das receitas aferidas com o Maracanã.
Se, por um lado, os gastos aumentariam, a expectativa de receitas também. Não se sabe, contudo, se o clube conseguiria atrair eventos e jogos (a concessão prevê que o uso do estádio deve ser majoritariamente esportivo) em quantidade suficiente para fechar as contas no fim do ano.
Exemplos verificados em outros estados lançam dúvidas quanto à sustentabilidade desse modelo. Em Minas Gerais, por exemplo, o Atlético-MG optou, por muito tempo, por mandar seus jogos na Arena Independência, do rival América-MG, em detrimento do Mineirão.
Em 2012, o Galo havia assinado um contrato de dez anos de duração com a BWA, gestora do estádio, que havia sido reformado com recursos do governo do estado e passou a ser administrado mediante concessão, com o Coelho mantendo a propriedade do imóvel e recebendo um percentual de suas receitas totais.
Nas últimas temporadas, o Atlético-MG voltou a utilizar o Mineirão, até que, no ano passado, o clube inaugurou a Arena MRV, que se tornou sua casa definitiva, ao passo que o América-MG permaneceu no Independência.
O Cruzeiro passou a ser o principal mandante do Mineirão, mas, no começo de 2023, a gestão comandada pelo ex-jogador Ronaldo Fenômeno, que era dono de 90% da SAF do clube celeste, entrou em atrito com a gestora Minas Arena, deixando de mandar os jogos no estádio, situação que se estendeu até maio daquele ano, quando a Raposa voltou a atuar no local.
A divergência tinha a ver com a exploração das propriedades comerciais do Mineirão, que eram de uso exclusivo da Minas Arena. Neste mês, a diretoria encabeçada pelo empresário Pedro Lourenço, o Pedrinho BH, novo dono da SAF do Cruzeiro, iniciou conversas visando a costurar um acordo para fortalecer a parceria entre a gestora do estádio e o clube.
Perspectivas
Em entrevista concedida ao podcast Maquinistas, da Máquina do Esporte, em novembro do ano passado, o vice-presidente de comunicação e marketing do Flamengo, Gustavo Oliveira, comentou sobre a importância do Estádio do Maracanã para as estratégias comerciais do clube.
À ocasião, ele chegou a admitir que seu sonho era de que o Flamengo comprasse o lendário estádio, hipótese que vai se tornando cada vez menos provável, na medida em que o projeto no terreno do Gasômetro vai ganhando forma.
O dirigente também falou a respeito da importância de uma arena própria para o clube.
“Você tem o seu time performando melhor em casa. Você tem o programa sócio-torcedor, naming rights. Você pode fazer uma série de coisas com uma visão um pouco maior. É igual à sua casa. Se você tem um imóvel alugado por um período curto, não fará certas coisas. Se a casa é própria, você irá investir muito mais”, salientou.