As rescisões indiretas dos contratos de trabalho de atletas por inadimplência dos clubes

No Brasil, a Lei Geral do Esporte autoriza o atleta a rescindir de forma indireta seu contrato de trabalho quando o clube estiver devendo qualquer valor de sua remuneração por um período equivalente a dois meses - Reprodução

Quem acompanha futebol certamente já deparou com a notícia de que determinado jogador pleiteou na Justiça (estatal ou associativa) a rescisão indireta de seu contrato de trabalho por estar com a remuneração atrasada.

No entanto, as condições que autorizam essa rescisão são diferentes no âmbito da lei brasileira e dos regulamentos da Fifa, o que pode trazer, mesmo no Brasil, situações distintas, dependendo da nacionalidade do jogador envolvido.

Diante disso, esta coluna abordará as condições para a rescisão indireta na legislação brasileira e nos regulamentos da Fifa, assim como mencionará suas consequências pecuniárias.

Nos termos do Art. 14 bis do “Regulations on the Status and Transfer of Players” (RSTP) da Fifa, o atleta pode pedir a rescisão de seu contrato, por justa causa, quando o equivalente a dois meses de salário, ao menos, estiver em atraso. Nesse sentido, é possível que sejam somados inadimplementos parciais para que se considere que essa condição foi cumprida.

Passemos a uma situação concreta para ilustrar.

Vamos supor que o Atleta X tenha sido contratado pelo Clube A, em janeiro de 2024, mediante salário de R$ 2 mil. Pelo RSTP, para que lhe seja autorizado solicitar a rescisão indireta, o Clube A deve estar lhe devendo R$ 4 mil.

Isso pode acontecer pelo inadimplemento integral dos meses de janeiro e fevereiro de 2024. Ou, então, pode ser que o Clube A pague apenas R$ 1 mil mensais ao Atleta X ao longo dos meses de janeiro a abril de 2024 e, somado, esse inadimplemento parcial chegue ao valor de R$ 4 mil.

O Art. 14 bis do RSTP estabelece ainda que, para que haja a rescisão indireta, o atleta deve notificar o clube, concedendo-lhe ao menos 15 dias para pagar o valor em aberto. Caso isso não aconteça, considera-se que o contrato está rescindido após o decurso desse prazo.

Cabe ao atleta, então, pleitear indenização perante a Fifa. Ela será calculada com base na remuneração que o atleta receberia até o final do seu contrato, deduzindo-se eventuais valores recebidos de um novo clube ao longo do período previsto para a vigência do primeiro contrato.

Mais um exemplo: suponhamos que o nosso Atleta X tivesse sido contratado, pelo salário mensal de R$ 2 mil, para atuar pelo Clube A até dezembro de 2024, mas obtenha sua rescisão indireta em 1º de maio de 2024. A princípio, o Clube A deverá lhe pagar o valor da remuneração que seria devida entre maio de 2024 e dezembro de 2024, equivalente a R$ 16 mil.

No entanto, caso, no momento da decisão, se constate que o jogador foi contratado pelo Clube B, em setembro de 2024, pelo salário mensal também de R$ 2 mil, será deduzido do valor devido pelo Clube A o montante que o jogador recebeu do Clube B de setembro de 2024 a dezembro de 2024 (prazo em que estaria vigente, originalmente, o contrato com o Clube A). Assim, seria deduzido o valor de R$ 8 mil, de modo que o Clube A deveria pagar ao Atleta X apenas os outros R$ 8 mil.

A indenização, porém, vai além. Afinal, o RSTP também prevê que o clube devedor terá que pagar ao atleta uma indenização adicional, equivalente a três meses de salário (no nosso exemplo, o equivalente a R$ 6 mil). Em situações mais graves, essa multa pode ser aumentada, para até o equivalente a seis meses de salário (no nosso exemplo, o equivalente a R$ 12 mil).

Já no âmbito da lei brasileira, o Art. 90, §1º, da Lei Geral do Esporte, autoriza o atleta a rescindir de forma indireta seu contrato de trabalho quando o clube estiver devendo qualquer valor de sua remuneração por um período equivalente a dois meses. Convém, então, fazer quatro distinções com relação às regras estabelecidas pelo RSTP.

A primeira delas é que o critério definido pela lei brasileira não é quanto ao valor devido, mas sim quanto ao tempo de atraso. Pensemos no nosso exemplo anterior. Se o Clube A deixar de pagar ao Atleta X seu salário de janeiro de 2024 no quinto dia útil de fevereiro de 2024 (7 de fevereiro de 2024), apenas em 8 de abril de 2024, dois meses após o início do inadimplemento, é que ele poderá pleitear a rescisão.

A situação não muda se o inadimplemento for parcial. Isto é, se, em 8 de fevereiro de 2024, o Clube A pagar ao Atleta X, a título de salário, o valor de R$ 1.998, em tese, o jogador poderia, da mesma forma, pleitear a rescisão de seu contrato em 8 de abril de 2024.

No entanto, se, digamos, em 8 de março de 2024, o Clube A pagar ao Atleta X o salário de janeiro de 2024, mas não honrar com o salário de fevereiro de 2024, será necessário recomeçar essa contagem.

A segunda diferença relevante é que a lei brasileira é expressa ao autorizar que a rescisão indireta se dê não apenas pelo inadimplemento do salário, mas como pelo inadimplemento de outros encargos trabalhistas, como o depósito do FGTS, e de valores devidos a título de imagem.

A terceira, por sua vez, diz respeito ao rito. No âmbito da Lei Geral do Esporte, o atleta não é obrigado a notificar o clube antes de pleitear a rescisão indireta, sendo, inclusive, raro que o faça. Na realidade, torna-se parte da estratégia de muitos jogadores surpreender a agremiação com o início da ação.

A rescisão indireta só ocorrerá, porém, mediante uma decisão judicial. Em outras palavras, o Atleta X só poderia se vincular a outro clube se fosse autorizado pela Justiça do Trabalho ou pela Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) a fazê-lo.

A quarta e última diferença diz respeito às consequências financeiras da rescisão indireta. No caso da lei brasileira, é devida ao atleta a cláusula compensatória desportiva, que deverá ser ajustada entre as partes em cada contrato de trabalho. Essa cláusula deve equivaler a no mínimo a remuneração que o atleta teria direito a receber até o restante do contrato, sendo essa a disposição mais usual.

Apesar das discussões que existiram ao longo da tramitação do projeto de lei que originou a Lei Geral do Esporte, não há, na lei brasileira, uma previsão expressa de que a cláusula compensatória desportiva possa ser reduzida caso o atleta se vincule a uma nova agremiação.

Isto é, no nosso exemplo acima, caso obtenha a rescisão indireta de seu contrato de trabalho com o Clube A em 1º de maio de 2024, o Atleta X deverá receber R$ 16 mil, ainda que seja contratado pelo Clube B em 1º de setembro de 2024. Por outro lado, não há previsão de indenização adicional.

Vê-se, assim, que há particularidades em cada um dos sistemas. Ocorre, porém, que o RSTP pode se aplicar para atletas que componham o elenco de times brasileiros, caso eles sejam estrangeiros.

Ou seja, caso o Atleta X seja argentino, a sua relação com o Clube A poderá se pautar, a princípio, tanto pela Lei Geral do Esporte quanto pelo RSTP.

Diante disso, é extremamente importante que as particularidades de cada sistema sejam conhecidas por quem participa do futebol brasileiro.

No que se refere à possibilidade de rescisão do contrato de trabalho por iniciativa do jogador e por justa causa, existe ainda um tema mais polêmico: a chamada rescisão por justa causa esportiva. Seria esse um tema para outra coluna?

Alice Laurindo é graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em que cursa atualmente mestrado na área de processo civil, estudando as intersecções do tema com direito desportivo; atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados; é conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; é membra da IB|A Académie du Sport; e escreve mensalmente na Máquina do Esporte

Sair da versão mobile